Entrevista com The Home Project Design Studio

DESIGN / ARTESANATO

Fundado em 2005 pelo designer português Álbio Nascimento e pela designer alemã Kathi Stertzig, o The Home Project Design Studio tem uma larga experiência em que tem aplicado a sua visão do design como uma forma de preservar a identidade do lugar e proporcionar o bem-estar social, criando redes de partilha através de práticas de design/artesanato. A sua abordagem ao design, centra-se sobretudo num trabalho relacional que engloba a escuta do que existe no local – as pessoas, as memórias, as tradições artesanais e os materiais endógenos – e a mediação entre estes, as instituições e agentes culturais que possam facilitar a potencialização das suas mais-valias de uma forma sustentável.

Nesta entrevista, Álbio Nascimento e Kathi Stertzig partilham a sua experiência na Kutxi – Residência Criativa Artesanato + Design (fig. 1, 2 e 3), em 2017, Mindelo, de colaboração e por convite do Centro Nacional de Artesanato e Design de Cabo Verde (CNAD), e na Residência Criativa em Cerâmica e Fibras Vegetais, Açores (fig. 4), 2019, de colaboração com o Centro Regional de Apoio ao Artesanato (CRAA). A primeira residência esteve a cargo do The Home Project Design Studio e da designer Susana António, e decorreu no âmbito de URDI – Feira do Artesanato e do Design de Cabo Verde, tendo reunido dezoito artesãos das várias ilhas de Cabo Verde durante três semanas, na área da olaria, cerâmica, panaria e vime.

Fig. 1 – Kutxi – Residência Criativa Artesanato + Design, Cabo Verde, 2017.

A residência de cerâmica com fibras vegetais, em 2019, nos Açores, veio no seguimento da colaboração que o The Home Project Design Studio tinha iniciado com o CRAA desde 2017, através de um convite feito por este Centro para consultoria e levantamento. A forma como abordaram esta proposta é exemplificativa da sua estratégia: propor um formato alternativo, realizando um levantamento com uma componente formativa em três ilhas: na Ilha da Terceira, na Ilha de São Jorge e no nordeste da Ilha de São Miguel.

Fig. 2 e 3 – Kutxi– Residência Criativa Artesanato + Design, Cabo Verde, 2017.

Visitaram os artesãos no seu atelier, observavam a sua atividade a fim de detetar problemas e oportunidades – que poderiam ir desde questões relacionadas com o equipamento à comunicação – e reportar ao CRAA, a fim de novas medidas serem desenvolvidas, elaborando relatórios com propostas de medidas, tanto individuais como coletivas, especificas para cada caso – podendo ir desde residências a projetos de apoio à comunicação ou formação, entre outros.

Fig. 4 – Residência Criativa em Cerâmica e Fibras Vegetais, CRAA – Açores, 2019,

No seguimento desta colaboração, o The Home Project Studio foi convidado para realizar a residência de cerâmica com fibras vegetais, em 2019, com sete artesãos: Aida Bairos (mobiliário de vime, cestaria e empalhamento), Cristina Bairos (olaria e pintura cerâmica) e Marina Mendonça (azulejaria, modelação cerâmica e cerâmica figurativa) da Ilha de Santa Maria; Maria Manuela Meneses (empalhamento) e Maria Aurélia Rocha (cerâmica, azulejaria e olaria) da Ilha Terceira; Bento Silva (capacharia e cestaria) da Ilha de S. Miguel; e Luís Lopes (barro), de Cabo Verde que trouxe até barro da sua ilha natal, Santo Antão. Utilizaram cerca de dez tipos de vime: a espadana, o dragoeiro e vários tipos de palhinha, entre outros. A residência foi sobretudo experimental, testando e tentando desenvolver novas propostas, embora no final cada um tivesse várias peças desenvolvidas e desenvolvido várias colaborações. O resultado destas experimentações veio a ser exposto na Ilha de São Vicente, Cabo Verde, em setembro de 2019.

Poderiam falar um pouco do vosso trabalho e da vossa colaboração com o Centro Nacional de Artesanato e Design de Cabo Verde (CNAD) e o Centro Regional de Apoio ao Artesanato (CRAA), nos Açores e em Cabo Verde? Antes da residência de cerâmica e fibras vegetais, já tinham colaborado com o Centro Regional de Apoio ao Artesanato (CRAA)?

O CRAA pediu-nos para fazer uma espécie de workshops com os artesãos. Propusemos um formato diferente (sem alterar o orçamento): um levantamento com uma componente formativa: Fomos visitar as pessoas ao seu espaço de trabalho e ficávamos 2/3h (mínimo) com cada um, ficávamos a perceber o que é que elas faziam… E conversámos sobre algumas mudanças que poderiam fazer para melhorar as suas actividades. Fizemos, então, relatórios para o CRAA, a dar indicações do que poderiam ser novas medidas para a abordagem aos artesãos desses territórios, onde identificámos questões comuns e problemas individuais. Deixámos em relatório propostas para o CRAA trabalhar, tanto individualmente como coletivamente, com esses artesãos e territórios. Fizemos isso na Ilha de São Jorge, na Ilha Terceira e no Nordeste da Ilha de São Miguel. Esses relatórios acabaram por resultar em várias novas medidas pelo CRAA para toda a região como residências, consultorias, muitos projetos de apoio à comunicação. Uma coisa que nós identificámos é que as pessoas acabam por querer ter um logotipo ou embalagem e não têm noção de como é que isso pode ser implementado estrategicamente na atividade deles, acabando por desenvolver esses materiais ou produtos de comunicação com profissionais que não têm conhecimento profundo do setor, o que acaba por descaracterizá-los. Por exemplo, nós encontrávamos padarias, tecelagens, que tinham cartões de visita e logotipos muito bonitos, mas completamente desfasados do que era a realidade daquelas pessoas. Eles tinham a noção de que tinham um produto especial que tinha de aparecer no mercado com essa diferenciação, portanto tudo o que faltava era a mão de obra que fornecia material de qualidade com uma estética adequada, que conseguisse comunicar quais os valores daquelas atividades, valorizando a origem deste produto, dos materiais, as pessoas. Dar a conhecer o trabalho manual por detrás daquela atividade. Fizemos, também, uma pequena bolsa de empresas e de designers que identificámos com essa sensibilidade para prestar esses serviços. Realizou-se também uma residência. Muitas vezes, acabámos por articular os financiamentos que o CRAA dispõe – como o SOCA – Serviço de Orientação Criativa para o Artesanato ou o SIDART –Sistema de Incentivos para o Desenvolvimento do Artesanato, identificando situações muito específicas: por exemplo, uma pessoa que aconselhámos que viesse fazer uma formação no continente – o que acabou por acontecer – ou que tivesse um equipamento mais eficiente, por exemplo, e reportávamos ao CRAA para agilizar essas questões. Ou seja, basicamente, era uma espécie de facilitação e articulação, a fim de agilizar uma estrutura de modo a torná-la mais eficaz. Às vezes, há muito pouco do “tradicional” design de produto aqui no meio. Tivemos sempre esta modéstia de chegar e não colocar à frente aquilo que achamos que poderia acontecer. O processo começa sempre por uma aprendizagem, por ouvir e tentar perceber onde é que estamos e onde é que aquelas pessoas estão: as coisas fazem mais sentido nesse contexto. Porque mesmo que os artesãos, possivelmente, desejem exportar os produtos, estes têm que carregar a origem, valorizá-la. Não interessa o que é, pode ser uma embalagem, pode ser um cartão de visita, pode ser uma mufla, pode ser um curso… Como este processo correu muito bem, existia o projeto de ter uma “incubadora para o artesanato”, mesmo no edifício do CRAA – nós apoiámos um pouco o processo de candidatura da incubadora e a sua a construção o que é algo que, tanto quanto sabemos, não tinha ainda sido feito em Portugal. Colocámos muitas vezes a questão – o que é que é uma incubadora para o artesanato? Tudo o que existia era muito aquele formato de start-up e novas tecnologias, que são o formato de incubação mais conhecido. Mas nós demos a nossa perspectiva e contribuímos para que respondesse a um setor específico. No fundo, estamos sempre em formatos novos, a nossa vida nunca foi facilitada…

É diferente do Algarve, onde, por causa do projeto TASA (Técnicas Ancestrais Soluções Atuais), vocês já têm todos esses contactos que adquiriram ao longo do projeto…

No projeto TASA, também começámos do zero… Já em 2004, fizemos as primeiras viagens de pesquisa entre o Algarve e o Alentejo. Um artesão enviava-nos para outro. Em 2006 iniciámos uma exposição anual em Olhão, com o apoio da Câmara Municipal. Tanto quanto sabemos foi a primeira exposição de design no Algarve. É preciso perceber que não se falava de design no Algarve: o Algarve é turismo. Nós viemos dizer que o design não tem que estar perto da indústria, o design também pode ter outras vertentes e ser uma prática ligada, por exemplo, à produção artesanal tradicional. Agora, a região até já tem um prémio nacional de design, mas continua sem design “próprio” … Ou seja, não se começou por educar e formar designers que soubessem trabalhar a memória,a paisagem natural específica e a cultura tradicional. Saltou-se para o prémio, para as incubadoras, workshops e residências: se não existe conhecimento e uma identidade própria, de saber-fazer profissional (idoneidade) há o risco de se terminar numa boa operação de charme sem futuro. É avançar rápido pela tática e perder a oportunidade da estratégia a longo prazo. Porque o Algarve hoje já poderia ser líder na investigação e desenvolvimento de uma prática de design especialmente dirigida à produção artesanal, à cultura tradicional. (Essa oportunidade foi criada pela forma como o Projecto TASA foi implementado.) Isso continua por fazer em Portugal. Há projetos pontuais mas, é preciso perguntar: o que é que os territórios receberam e qual o contributo para a prática do design?

Não são sustentáveis, não é?

Eu leio tudo o que encontro de publicações, catálogos, projetos, exposições em Portugal e vejo muitos projetos; por vezes, convidam artistas internacionais que estão muito pouco tempo no local com os artesãos. Alimenta um modelo paternalista, de cima para baixo. Desenham umas “peças”, produzem catálogos muito bonitos e promovem em circuito fechado para garantir os aplausos. A fórmula repete-se e replica-se sem crítica. E contribui para a falta de sustentabilidade criativa e produtiva dos lugares.

Achas que não têm mesmo?

Eu acho que falta muito, mas como é que a crítica é feita do mesmo ponto de vista…?

Mas aí, a meu ver, o problema não é da crítica, se de facto não têm sustentabilidade, o problema é da infraestrutura, das pessoas que não conceberam as coisas a pensar no depois. Na altura de conceber os projetos para ter os financiamentos, têm de preencher certos requisitos e, talvez, não tenham pensado bem numa perspetiva de futuro… No fundo, é falta de pensamento estratégico, não é?

Acho que temos que ser um pouco mais assertivos com estas questões, não podemos simplesmente dizer que foi falta de visão estratégica. Os técnicos redigem candidaturas estruturadas para um território específico. Para responder a problemas identificados. E para muitos não será a falta de experiência. Como é possível não se pensar estrategicamente quando se está a escrever uma candidatura para financiamento público?

Então não aplicaram a estratégia…

Os projetos passam por várias entidades regionais e europeias – até serem aprovados. Não é só falta de visão estratégica mas de coragem para assumir um envolvimento de todos os actores do território, de saber trabalhar lado a lado com as pessoas. É preciso estar com os artesãos e perceber a duração do trabalho, a relação com a paisagem, as alternativas de materiais e tecnologias, organizar a produção, explicar a importância de manter o controlo de qualidade, falar com as entidades e instituições envolvidas para continuarem os processos… onde estão os mercados que valorizam cada produto e serviço. Depois, manter a qualidade e as pessoas envolvidas em todas as decisões. Mas manter também a qualidade social e cultural dos projetos.
Talvez falte um pouco de paixão mesmo pelas próprias coisas… as pessoas agem porque têm que preencher o curriculum ou por outras razões, depois, isso revela-se no trabalho… O CRAA, nos Açores, tem realizado um trabalho com continuidade, a impressão que eu tenho é que as pessoas do CRAA agem por paixão, o gosto pelo artesanato tradicional, é algo que está enraizado…

Estamos a perder actividades constantemente. Umas através de uma transformação da actividade, nas características do produto ou da técnica, ou utilização, outras porque desaparecem. O Joaquim de Vasconcelos já se queixa do desaparecimento de práticas nos seus artigos do final do século XIX. Há coisas que vão acabar porque o seu tempo acabou. Nesse caso temos de documentar e arquivar o mais possível para salvaguardar o património e poder recorrer a esse conhecimento quando necessário. Mas o mais urgente é focarmo-nos nas práticas que podem trazer bem-estar pela sua qualidade de design e tecnologias limpas, de relação com a paisagem e o lugar.

Muitas casas de bordados faliram e alguns designers, por exemplo, Hugo Santos que trabalha com os bordados porque a mãe dele fazia bordados e continua a haver sempre pessoas que trabalham com os bordados. Mas, para ser rentável, é necessária a inovação, como o CRAA procura fazer, para tornar o preço da produção mais viável… Portanto, vocês participaram nesse levantamento, depois fizeram um intercâmbio em 2017, fizeram a Kutxi nesse ano, com a Susana António?

Só para terminar com os Açores, nós fizemos esse levantamento formação/consultoria, pensámos um formato que servisse a todos — CRAA e artesãos. O importante é que cada dia de trabalho tenha resultados. Fizemos esse trabalho, depois apoiámos com o arranque da incubadora e a seguir fizemos uma residência: Cerâmica e Fibras Vegetais em Ponta Delgada, com dois artesãos de Cabo Verde.

Quais eram os artesãos, o Luís Lopes e quem mais?

O segundo artesão era o cesteiro Miguel Fortes, de São Nicolau. Era uma missão impossível porque eram só duas semanas — duas semanas para secar o barro, em janeiro, nos açores… E para aplicar as fibras vegetais no barro já cozido … Felizmente percebemos isso a tempo. Eu liguei para os ceramistas da residência e todos me disseram que eram precisas pelo menos três ou quatro semanas para secar uma peça nessa altura do ano. Mas a directora do CRAA, a Sodia de Medeiros era uma pessoa felizmente persistente e lá fomos, mas sempre com o acordo que seria uma coisa muito laboratorial, ou seja,  mais de conversarmos todos, de aprender em grupo, de testar, de fazer coisas mais artísticas, no fundo, que experimentássemos muito, para descobrir novas abordagens individuais — um momento de partilha, muitas conversas, mas claro, no final, depois de tudo acontecer, conseguimos fazer com cada um, uma ou duas peças. Foi difícil mas muito gratificante.

Não dava para reproduzir?

Algumas sim, mas, na maioria eram coisas que necessitavam mais afinações para serem “um produto”. Mas estavam todas muito bem definidas, portanto era uma questão de cada um acabar o trabalhar na sua oficina. 
Durante a residência no CRAA chegámos a construir uma estufa com um desumidificador, onde conseguíamos secar as peças tão rapidamente que algumas estavam a quebrar. Mas aquele desumificador foi tão importante que, quando tirámos a nossa fotografia de grupo no final, o desumidificador estava lá também — já fazia parte da equipa — fotografia de todos com o desumidificador. Sem ele não seria possível, foi o mais importante (ri-se) e conseguimos, ainda, graças à engenharia daquele pessoal, e muito pelo Luís – que trouxe o seu próprio barro – conseguimos fazer duas fornadas e no último dia deixámos uma a fazer, só se abriu depois de todos termos partido. Como se a residência continuasse sem nós.

Usaram barro da Ilha de Santa Maria?

Não, usámos barro adquirido pelo CRAA para o efeito. Veio do continente e o Luís trouxe o barro de Santo Antão, do que ele prepara para si mesmo. Depois, usámos fibras vegetais dos Açores: vários tipos de vime, Dragoeiro, espadana. Em duas semanas, para além da missão importante de conseguir desenvolver coisas neste contexto, conseguimos criar um grupo que ainda existe no Facebook, cada vez que lá vamos, eles estão lá a trocar ideias e a gente conversa, é muito bom.

Portanto, é um grupo formado por sete artesãos…

Ficou ali um grupo de amigos que se apoia. Conseguimos que cada um retirasse alguma coisa dali, ou seja, falámos muito individualmente, discutimos as coisas de cada um em grupo, tivemos várias reuniões pelo caminho. Algumas pessoas desenvolveram mesmo um produto, como a Marina Mendonça, que se impôs o objetivo de desenvolver um produto ali e de aproveitar a nossa presença, ou a Cristina Bairos que também decidiu fazer três ou quatro produtos. Portanto, focou-se muito em acabar coisas, repetiu várias vezes para corrigir, depois trabalhou o vime na cerâmica. Além disso, fizemos um inventário de todos os materiais, só em vimes, eram cerca de dez – a espadana, o dragoeiro, a palhinha, vários tipos de palhinha – ou seja, fizemos todo esse levantamento–depois ainda, propusemos fazer um catálogo extenso com todo esse material, desde as ferramentas, de cada um, as biografias de cada um, os materiais, etc. Para estas, fizemos uma entrevista e, depois houve uma transposição e edição de texto. Ou seja, procuramos não nos ficar apenas por desenvolver algumas coisas e fotografar e ponto final. Continuamos a trabalhar com alguns deles. Estive em janeiro com a Aida Bairos e a Marina Mendonça, na Ilha de Santa Maria.
Fizemos, também, uma residência em Cabo Verde, em 2017, pois interessava-nos também essa troca. O Irlando Ferreira, diretor do CNAD, convidou-nos para ir fazer esta residência de 3 semanas, no CNAD, no Mindelo. Nós nunca tínhamos lá estado. Pedimos informação, … e estávamos um pouco nervosos por não conhecer bem ao que íamos, porque não é muito o nosso registo, irmos a um sítio sem ter um conhecimento aprofundado do contexto. O que nós queremos sempre saber é o que é que nós podemos deixar, de que forma podemos contribuir positivamente. Isso só se consegues com tempo, só o tempo permite essa relação e proximidade. Eu não estive em Trás-os-Montes mais do que dois dias, mas se nos convidarem para ir fazer um projeto nessa região, nós temos uma ideia, sabemos o que lá se passa, temos uma ideia dos materiais, as condições e o contexto, porque vivemos aqui no país. Mas, em Cabo Verde, nós não conhecíamos os materiais e os artesãos e o seu contexto cultural e socio-económico. Não conhecemos com a profundidade necessária para trabalhar lá, mas, no fundo, as residências são também, e sobretudo, a criação de uma relação … 
Muitas vezes o que está por trás das intenções institucionais é uma espécie de consultoria, de abertura de horizontes para os seus artesãos. Que os artesãos levem alguma coisa dali, por sua vez, os designers vão com a ideia de fazer objetos pré-pensados, o que acaba por ser num desencontro.
Os artesãos têm duas posições: ou fazem aquilo que lhes mandam, estão ali, reservados e produzem aquilo pelo qual foram convidados a fazer, ou tentam retirar qualquer coisa para si e desligam-se. Nós, à partida, estamos ali para trabalhar em conjunto e aprender com eles tanto quanto esperamos que eles poderão aprender connosco. Ou seja, geralmente, quando se convida o designer, já existe uma hierarquia pré-estabelecida, muitas vezes, difícil de quebrar. Ali, foi muito difícil de quebrar, pois queríamos que os artesãos falassem e eles ficavam à espera de que nós dirigíssemos a ação..

A Kutxi era dedicada à cerâmica e à cestaria, não era?

Era tudo, o Irlando Ferreira, diretor do CNAD, convidou dezassete artesãos de várias ilhas, entre aqueles que eram, dos melhores artesãos em Cabo Verde, e reuniram-nos ali pela primeira vez. Foi muito especial.

Durante quanto tempo?

Três semanas. Fizemos muitas experiências, fotografámos tudo, fizemos um levantamento dos materiais, do seu processamento, da origem de cada um deles que incluímos no catálogo, assim como biografias de cada artesão, a exposição no final. Procuramos sempre que o trabalho de cada artesão seja bem representado e que seja, sobretudo, um processo horizontal — estamos todos a aprender e a fazer em conjunto.  Mas na Kutxi foi um pouco complicado, porque não conhecíamos bem os materiais nem conhecíamos as pessoas e o contexto: foi uma aprendizagem express: a primeira coisa que fizemos foi caminhar pelo Mindelo com o grupo, conversar e conhecer a cidade para tentar  perceber onde é que estávamos de facto. Mas, claro, quase todos eles vinham de outras ilhas, portanto, trabalhar com pessoas sem saber o seu contexto, nem social, nem cultural, ou económico, é desafiante…

Mas esse catálogo que fizeram sobre a Kutxi, só foi divulgaoa passado dois anos…

Sim, mas o importante é termos sempre o cuidado de deixar algum testemunho para que aqueles que chegarem depois de nós consigam pegar a partir dalí. Pode ser apenas uma sensibilização. O pior inimigo que temos nos projetos que desenvolvemos num território ou numa comunidade, não é a incapacidade das pessoas, nem a sua falta de competência ou de sensibilidade das pessoas, são os outros que estiveram antes que não tiveram a capacidade de ouvir. 
Os artesãos e as artesãs são resistentes à mudança despropositada e ilógica, que lhes chega de fora, o que é bom. Por isso há que os ouvir para deixar o seu testemunho sobre o que acontece. Quando propomos publicar o conhecimento produzido é para que quem chegar depois consiga ter uma outra leitura do território e tenha por onde pegar para continuar a trabalhar. Portanto, não importa que as publicações demorem, desde que tomem em atenção aquilo que já está feito e tenham o cuidado de tentar perceber a importância de deixar ferramentas para que outros possam continuar a trabalhar de outra forma e desenvolver outros caminhos.
Depois dos projetos, procuramos sempre manter o contacto com os artesãos e apoiar o desenvolvimento da sua pesquisa.

Têm mantido o contacto com os artesãos que fizeram a oficina, portanto na Kutxi, e que eram dezassete?

Todos, não, mas alguns.

Mas fizeram um workshop por ocasião da exposição no Centro cultural de Mindelo?

Fomos convidados a continuar este trabalho com o CNAD mas não tínhamos a disponibilidade que a residência exige. Assumimos uma posição de comissários, definimos o  conceito com o Irlando Ferreira e convidámos a Eneida Tavares, que tem ligação também com Cabo Verde (a avó é cabo-verdiana) portanto alguém que fala um pouco de crioulo, e basicamente fizemos uma curadoria, se quiseres, mentoria/curadoria.
Orientámos a residência, a qual tinha como tema os tamboreiros, e estivemos sempre em contacto com a Eneida remotamente. Depois, fomos lá uma semana para orientar a exposição e apresentação do trabalho. Mais importante foi a apresentação catálogo da Kutxi. Fizemos, também, algumas conversas, fomos júri do Prémio Nacional de Artesanato, ou seja, basicamente fomos lá orientar a residência e garantir a continuidade ao trabalho de 2017.

Pelo que li, havia uma exposição do vosso workshop nos Açores, no Centro Cultural de Mindelo, onde o Luís Lopes realizou um workshop de cerâmica, em 2019…

Não tivemos oportunidade de visitar essa exposição. Foi apresentado o trabalho que fizemos durante essa residência nos Açores. Esse trabalho esteve depois a fazer uma itinerância pelas ilhas de onde eram os artesãos que participaram na residência. Portanto, estiveram em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, nos Açores, na Ilha Terceira, na Ilha de Santa Maria e na Ilha de São Miguel. E cada uma dessas exposições foram organizados workshops com os artesãos do local.

E estão a planear algum projeto com o CNAD no futuro?

Estamos sempre em contacto com o diretor do CNAD, o Irlando Ferreira, partilhamos muitas ideias, e acima de tudo uma ideia comum sobre o caminho para a evolução da produção artesanal. Através deste contacto e amizade fomos  acompanhando o trabalho do CNAD na acreditação do selo de artesão, e no manual do artesão. 
O ano passado, a convite do Ministério da Cultura de Portugal, concebemos a Estratégia Nacional para as Artes e Ofícios Tradicionais. Simultaneamente, o Irlando Ferreira estava a desenvolver a acreditação do artesão, então, conversamos bastante, e partilhámos ideias e visões para o sector.

Acham que pode haver algum potencial de intercâmbio entre-ilhas?

Claro. Nesta residência que fizemos nos Açores, por exemplo, falámos muito nisso. Há uma característica insular é a capacidade de reinvenção e sobrevivência, de resiliência, resultante da condição geográfica. Isso é manifesto na produção artesanal mais tradicional. Ou seja, há, de facto, uma identidade própria naquilo que é a insularidade, que se manifesta num modo de viver e que se consolida na cultura material. 
O modo de fazer está relacionado com a permanência nos lugares, com o isolamento. A insularidade está presente tanto na paisagem natural, como nos materiais e na forma com que estes são trabalhados, ou seja, na construção da experiência do lugar.
Todos temos muito a aprender com essa maneira de viver e fazer, que é muito resiliente, mas, ao mesmo tempo, não é invasiva, nem colonizadora, resulta numa relação saudável com a paisagem.

Faz parte do quotidiano, não é?

 Sabes que tens 50 km2 e é com aquilo que tens que viver. Portanto, vais ter muito respeito pelo meio ambiente pois disso depende a sobrevivência. Acho que quem vive num continente inteiro não tem esse tipo de consciência sobre o espaço em que vive, pela paisagem natural. Ou seja, não tem essa necessidade de saber viver com o seu meio natural.

Sim, eles fazem-no porque, também, são obrigados a fazer, mas também o fazem com muito reconhecimento e muito respeito…E a noção do tempo também é diferente, esse vagar de fazer as coisas ..

Toda a gente se conhece, há muita proximidade… Nós encontrámos muitos elementos que são próprios dos dois arquipélagos, dos Açores e de Cabo Verde. e que são muito ricos… acho que há muito a aprender com as ilhas.