Entrevista com João Fortes

ARTESANATO

Em memória do mestre tecelão e artista cabo-verdiano. O mestre artesão João Fortes formou-se no Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD) de Cabo Verde, tendo feito parte do corpo de mestres artesãos deste Centro durante trinta anos ao longo dos quais formou uma nova geração de artesãos e desenvolveu paralelamente uma carreira ao nível das artes plásticas. Tendo-se tornado particularmente conhecido pela qualidade das suas tapeçarias, de composições originais e de um estilo notável, nesta breve entrevista, partilha a sua experiência no CNAD e homenageia o seu mestre, o artista Manuel Figueira. Sofrendo de uma doença prolongada, João Fortes faleceu pouco depois da entrevista, em junho de 2020, tendo constituído um marco da cultura cabo-verdiana pela sua sensibilidade e originalidade, especialmente ao nível da tapeçaria.

Fig. 1 – João Fortes, Tapeçaria Kolá San Jon, 2016.

Pode falar-me um pouco da sua experiência enquanto artesão e formador no CNAD?

Entrei no Centro Nacional de Artesanato em fevereiro de 1980, três anos depois da conversão da Cooperativa de Produção Artesanal Resistência, fundada em 1976, no Centro Nacional de Artesanato (CNA), tendo havido outros colegas meus que já lá estavam há três anos. Eu era militar e depois de cumprir o serviço militar, trabalhei nas obras públicas por um ano e o Sr. Manuel Figueira convidou-me para participar nas atividades, mas não era como funcionário, só a partir de 1980 é que passei a ser funcionário do Centro. Lembro-me que desenhava muito e que os meus desenhos eram apreciados pelo Sr. Manuel Figueira e pelos meus colegas. Tudo o que eu sei, aprendi lá, a minha formação foi toda realizada no CNA: aprendi tapeçaria, tingidura, batique, entre outras técnicas artesanais. Aprendi muito com o Sr. Manuel Figueira. É um grande mestre que nos encoraja a explorar vários domínios, deixando-nos sempre à vontade. Lembro-me que ele pressionava sempre os meus trabalhos, borrava as tintas…dizia, “tens de ser mais descontraído, tens de usar a estupidez natural”. Achava engraçado, porque, como sabe, os artistas antigamente ensinavam a fazer tudo bonitinho, e contrariava essa ideia, dizendo que cada um tinha a sua forma de expressão.

E ficou lá a trabalhar como contratado?

Só passado algum tempo é que ingressei no quadro do CNAD. Este iniciava como artesão auxiliar até chegar ao topo da carreira que é professor artesão, onde acabei por chegar. Neste momento, por motivos de saúde, não trabalho. Ainda não estou reformado, mas mesmo que tivesse a trabalhar não conseguia fazer muito porque, tenho problemas de vista, mas mesmo assim ainda pinto, mas tem de ser de dia.
Especializou-se em que área?
Primeiro em tapeçaria, batique, depois aprendi outras coisas, como a técnica de stencil através de um curso em que participei. Já ensinei muitas pessoas, como por exemplo, o nosso recentemente falecido Alex da Silva e também aprendi muito. Alex da Silva aprendeu tapeçaria no CNAD. Lembro-me de ter começado dar-lhe algumas noções de cores pois, para ensinar tapeçaria é preciso aprender a desenhar, e ele tinha sempre a tendência a dizer-me “quando eu estiver formado vou para o estrangeiro e vou aprender a pintura abstrata” … Depois foi para a Holanda, mas foi muito novo. Era um dos melhores alunos… Havia outros rapazes que pertenceram ao primeiro curso que demos. Ensinei muita gente a trabalhar na área, agora é que a geração mais nova já não tem tanto interesse pelas técnica artesanais tradicionais.
O CNAD, o Centro Nacional de Artesanato converteu-se em Centro Nacional de Artesanato e Design em 2011: atualmente já não dá formação?
Não temos espaço para isso. Já exportei tapeçaria para fora, muita tapeçaria. Muitos cabo-verdianos encomendavam tapeçarias, mas depois essas encomendas pararam, mas o que se aprende nunca se esquece.
Pode falar-me um pouco sobre a sua participação na residência criativa TEADA realizada em 2018, no quadro da URDI – Feira Nacional de Artes e Design de 2018, no âmbito do tema da panaria, na qual foram convidados três artistas cabo-verdianos – Manuel Figueira, Alex da Silva e Bento Oliveira – para a realização de uma tapeçaria em colaboração com artesãos?
Sim, eu participei na TEADA, juntamente com o Marcelino Santos e a Joana Pinto. Realizei cinco bandas da tapeçaria. Deram-me o desenho para realizar a tapeçaria e ia comunicando com o Alex da Silva. A realização da tapeçaria demorou cerca de 2 ou 3 meses. Lembro-me de uma vez que estávamos a trabalhar, e o Alex da Silva telefonou-nos do Dubai e dando-nos algumas dicas através da Internet. Nós só executámos, foi o Alex da Silva que concebeu o desenho da tapeçaria. Esta tem que ser feita em tamanho normal, com a largura do pente que vamos utilizar. Mas quando eu faço os meus trabalhos eu é que faço tudo.

O João também faz os seus projetos das tapeçarias?

Na maioria dos meus trabalhos – quase todos da minha autoria – o design é feito por mim, eu tenho uma oficina e um tear em casa onde vou trabalhando…

Fig. 2 – João Fortes, Tapeçaria , Banco Interatlântico, Mindelo, Cabo Verde

Quais são as suas fontes de inspiração?
O Manuel Figueira ensinou-nos que não devemos copiar de fotografias, que o melhor é desenhar ao vivo, para copiar já existem as máquinas fotográficas. Agora eu até desenho pessoas em movimento, o meu cérebro já capta esses movimento de forma automática. Antigamente íamos aos mercados e aos jardins infantis e sentávamo-nos, desenhando. O Manuel Figueira dizia, “tu é que sabes se vais meter como copiaste do natural, tens é de dar alguma coisa tua ao desenho, e natural não intervém no processo criativo”.
Enquanto trabalhava para o CNAD fazia também tapeçarias da sua autoria?
Fazia em casa, por vezes usava as instalações do CNAD. À noite, se eu quisesse ir lá, era só falar com o guarda que era meu amigo. Eu entrava e ficava quietinho a trabalhar, porque em casa às vezes não há aquela paz, há crianças, um gato que vai lá e derruba a tinta… Uma vez fui lá fazer uma tapeçaria e estava a fazer a última banda quando despertei: já era manhã e o guarda estava a bater na janela. Tinha adormecido e depois a minha mulher estava muita aflita porque não sabia de mim. Criei os meus filhos todos com a tapeçaria e com pinturas, com tudo.
Mas tinha um contrato, certo?

Eu pertencia ao quadro, aliás eu passei a pertencer ao quadro do Ministério da Cultura desde 1987.

E depois eles é que comercializavam os produtos?

Sim, no princípio até davam-nos a parte do direito de autor, não era muito, mas dava jeito. Eu fazia muitos trabalhos particulares e dava aulas.
Coordenou a residência da Renda Brava em 2018?

Não, os trabalhos eram meus! Fiz os desenhos enquadrei-os e os designers tomaram conta e depois as bordadeiras bordaram os meus desenhos em renda.

Gostou dos trabalhos finais?

Gostei imenso. Pela primeira vez houve pessoas a fazerem rendas com desenhos de um cabo-verdiano e isso é muito importante. Tive pena de não darem muito destaque ao meu trabalho, quem ficou mais destacado foram os designers. Eu fiz os desenhos e as bordadeiras fizeram algumas repetições e tornaram as coisas mais estéticas, mas eu fiquei no anonimato. Passei seis meses a desenhar a matriz, porque é preciso ser muito minucioso, são quadradinhos, e fiz muito rigorosamente. Aliás foi o último trabalho que eu fiz no Centro.

É possível atualmente ver as suas tapeçarias?

Sim. Há tapeçarias e trabalhos meus no CNAD. Fiz muitos trabalhos na Praia, na Ilha de Santiago. O ministério encomendava-me muitos trabalhos, depois, de repente deixaram de encomendar. Também já trabalhei com o Rosário Silva, um pintor que me encomendava desenhos que eu enviava para Portugal.
Foram tempos difíceis, a minha mulher tinha quatro filhos e eu três de casamentos que não deram certo. Nós juntamo-nos e criamos as crianças, e agora já saíram de casa e nós ficamos lá.  De facto as tapeçarias é que me deram um equilíbrio financeiro e isso é a minha maior satisfação, ter podido criar as minhas filhas…

Fig. 3 – João Fortes, Tapeçaria, Banco Interatlântico, Mindelo, Cabo Verde, detalhe.

Teve a sorte de fazer uma coisa que gosta!
Sim..
Obrigado pela disponibilidade.