Entrevista a Bento Oliveira

ARTE

Bento Oliveira nasceu da Ilha de Santo Antão, Arquipélago de Cabo Verde. Depois de uma estadia na Amazónia, onde se licenciou em Educação Artística – Habilitação Artes Plásticas, Universidade Federal do Pará (Brasil) – regressou a Cabo Verde, onde exerce a sua atividade como artista plástico, sobretudo na área da escultura e da xilogravura.
O seu trabalho tem uma dimensão telúrica e poética ancorada na paisagem geográfica e cultural cabo-verdiana, em especial na sua terra natal, onde iniciou a exploração plástica da fibra de carrapate através da técnica do rolo de tabaco, a qual dá corpo a uma dimensão espiritual ligada à noção de “seiva seca”.
Neste entrevista, o artista fala-nos sobre a descoberta do seu percurso artístico, os poemas e os sons que o acompanham nessa viagem, a colaboração com artesãos, a atividade como escritor, as incursões pontuais na área do design e a sua ingressão não-ortodoxa na área da tapeçaria cabo-verdiana, em 2018, por ocasião da URDI, Feira do Artesanato e do Design de Cabo Verde.§

 

Fig 1 e 2 – Bento Oliveira,S/Título, Xilogravura.

O teu material predileto de expressão tem sido a xilogravura?

Eu não tenho predileção. O pensar é a minha predileção, pensar é o meu predileto e o meu pensamento entra em cordialidade com a linguagem. Agora, a xilogravura, por uma sedução de cultivo e de vivência humana, é uma cultura, o meu fazer artístico é o que eu mais cultivo.

Fig 3 – Bento Oliveira, S/Título, 2018, Xilogravura. 

Os motivos dos teus trabalhos em xilogravura (fig. 1, 2 e 3) são sempre sóbrios, só com um objeto, porquê?

Por enquanto, desde 1997, essa sobriedade acompanha-me com a admiração de um grande mestre que eu tive que foi o Armando Sobral, em Belém, Brasil. Mas anda um cogito que está a levar-se para um trabalho para puxar mais luzes e um trabalho mais complexo em termos de jogo da composição, da goiva, do corte, da incisão. É algo bastante pertinente, dar à estampa algo bastante concreto. Estas formas, em concreto, representam um balaio, um concavo e uma cabra que liga, vais encontrar isso em Santo Antão. São sínteses que vou fazendo, sínteses que vou desenhando, embora às vezes o desenho fique totalmente longe do contexto original.

Esses elementos são a tua fonte de inspiração?

Não considero inspiração, são a minha fonte de pensamento. É uma ancoragem telúrica no meu contexto de Cabo Verde, da minha paisagem materna, a Ilha de Santo Antão e a Ilha de São Vicente. Por enquanto, ando a navegar na dimensão simbólica dessas duas ilhas.

De que outras formas, a teu ver, se manifesta essa dimensão telúrica no teu trabalho?

Um outro material que utilizo é a fibra de carrapato, de agave, endémico de Cabo Verde, da família do sisal. Utilizo essas fibras como material simbólico nas minhas esculturas e em outros trabalhos como, por exemplo, na tapeçaria realizada no âmbito da residência criativa TEADA (fig. 3). As fibras de carrapato têm uma dimensão simbólica que remete para a noção da seiva seca, do poema  “Sou santo-santomense” do poeta cabo-verdiano Arlindo Rosário  – que é, também,  o Ministro da Saúde e que tem uma veia poética extraordinária,  “Eu sou feito de seiva seca e o meu sangue corre nessas levadas…”. Quando eu estava a trabalhar nas minhas esculturas, fui lançando mãos e recursos embrenhado neste pensamento. Na altura, estava em Santo Antão e um professor de francês, José Martins, musicou este poema “Fazia serenata na coxa de uma mulata”… mas esse poema é bem longo…Eu peguei nesta ideia “seiva seca” e “meu sangue corre nessas levadas” que me serviu de “seiva” e argumento para trabalhar com a folha de carrapato, que transmitindo essa ideia de seiva seca, de resiliência. O cabo-verdiano, esse passageiro de identidade, tem essa tramitação de calemas, porque o cabo-verdiano vive numa calema.

Fig 4 – Bento Oliveira, S/Título, 2005.

Desculpa a minha ignorância, mas, o que é uma calema?

Calema é uma onda do mar que dificulta os barcos a acostarem e a chegarem ao porto e o cabo-verdiano vive neste balanço, entre uma calema e a outra; é o destino do crioulo (ri-se).

Havia um poeta, creio que era Pedro Corsino Azevedo que falava no “querer bipartido“ do cabo-verdiano que é a vontade de partir e, ao mesmo tempo, de ficar, estará  relacionado com isso?

Essa dimensão está sublimada no meu argumento poético. Agora, a partir daí, engendram-se várias direções durante o processo criativo, o qual está sempre em aberto.

A tua escultura acaba por ser, então, uma forma de tentar compreender a natureza…

Fig. 5 – Bento Oliveira, Nagual e Tonal, 2018.

Tapeçaria escultura em vários materiais. Artesãos Helder Santos [execução] Kinzim [assistente] Marcelino Santos [coordenação e acabamento] Col. CNAD – Centro Nacional de Arte, Artesanto e Design, Cabo Verde.
Existe a possibilidade de tornar o meu pensamento contemporâneo, neste planeta, no mundo. Porque eu não produzo para nenhum lugar em especial, produzo para este planeta e, neste sentido, a minha abordagem formal transcende o telúrico ligado a Cabo Verde.

Acaba por ser uma forma de atingir uma espiritualidade.

A espiritualidade é uma imanência extremamente presente na minha vida. Considero-me um ser espiritual, cultivo o que se pode chamar a transcendência, o que está para além da aparência, que é energia, é comunicação, é o sentir.

Face ao mundo em que nós vivemos – que acaba por ser o oposto -, uma escultura imbuída de espiritualidade acaba por ser quase um manifesto de afirmação contra o materialismo.

É o corpo imanente do meu pensamento.
É poético o modo como te exprimes… gostas de escrever?

Sim, agora estou escrevendo um livro que é “Bife de Caneca” que é engraçado…Eu estou a adotar a estética da escrita do concretismo, que conheci no Brasil, o Haroldo de Campos, o Paulo Leminski, o Arnaldo Antunes, o Hélio Oiticica. Sabes o que é o “bife da caneca”? Pão com chá, o lanche popular de São Vicente. São Vicente é uma ilha com uma tradição de panificação extraordinária. Quanto os portugueses a estabeleceram a panificaria em São Vicente, a tradição da panificaria em São Vicente dilui-se num esquecimento abrupto de uma memória bruta, numa ressaca de memória, coisa estranha…

Mas há tradição aqui da panificaria?

Hoje em dia algumas pessoas estão a restaurar essa tradição e a fazer esse pão de São Vicente. Então, eu chegava a casa da minha tia Luísa no Monte Sossego que guardava uma caneca de 1 litro de chá e um pão de burro; é o  que se chamava “bife de caneca”, o chá e o pão. O meu livro de poemas – que é uma abordagem de poesia visual -, chama-se “Bife de caneca”. Eu gosto de escrever, sim…

Essa dimensão poética acaba por ser transversal aos teus trabalhos…

A minha sedução pela escrita começou na minha adolescência, quando conheci a poesia do Tchalé Figueira, do Vasco Martins…esses eram os poetas que eu lia e adorava. Quando eu ia para a Ilha de Santo Antão comprava os seus livros de poesia e deliciava-me, à noite, na minha cama, ouvindo aquele programa da Antena 1, “5 minutos de jazz”… Ouvia até de madrugada, era lindíssimo, esse transcorrer da noite. Adoro a radiofonia. A radio cabo-verdiana perdeu muita qualidade de informação, qualidade estética e poética…Hoje em dia, oiço rádio francesa RFE, a qual me traz muita informação cultural. Tudo o que acabei de falar se repercute na minha obra visual e plástica, porque eu não escapo nada do dia a dia. Até quando como uma cachupa em algum lugar, ou experimento algo em outro lugar, tudo isso se reverte em mim em  informação visual

Então, tens que ter cuidado com as experiência que tens…

Tudo serve para criar. Ando a fazer um exercício para sair de uma retórica enfadonha dos curadores atuais que procuram transformar todos os artistas africanos em pensadores políticos.

No fundo, são modas, cada um tem o seu processo criativo…
Cada um tem o seu caminho, mas os curadores, através desse modismo efémero, acabam por criar uma espécie de máfia na arte e eu não assumo essa condição, pois tenho sempre consciência que a minha obra é um pensamento, é, em si já, política.
Tudo é politico, não é preciso ser explícito, senão, torna-se propaganda, instrumentalizando a arte como na antiga URSS
É isso mesmo…o Tchalé Figueira, que é, para mim, uma grande referência de verticalidade criativa, em termos espirituais e de uma amizade, muito bonita, poderia ser meu pai, por esse posicionamento, essa clareza … ele fala sempre assim, “eu não me vendo nem me rendo”. A sua obra é dilacerante, muito humana. No final dos anos 80 e início dos anos 90, Tchalé Figueira fazia coisas extraordinárias. Quando o conheci, fazia instalações e provocações artísticas em Mindelo que a comunicação social em Cabo Verde não registou. Eu era rapazinho, aí de uns 14, 15 anos, vinha para a rua da Praia e passeava pelos salões. Às vezes, chegava e o Tchalé numa disposição empolgante de pintar e tomar um grogue e foi lá que eu senti a poesia e a condição do artista.
Foi a tua primeira influência?
Foi uma experiência humana extraordinária. Depois, fui para o Brasil e foi lá que comecei a perceber que o meu trabalho teria que ter uma tessitura de pensamento. Comecei, então, a ter um discurso de pensamento, porque antes tudo era tempestade. Foi aí que assimilei essa dimensão orgânica. Na universidade, realizei uma escultura com matéria orgânica, feita com cipós e casca de semente de castanha do Pará, chamada “coletores de orvalho”, onde há pormenores estéticos, poéticos e líricos que a dimensão citadina não nos proporciona por causa da rapidez. Então, fiz os coletores desses orvalhos. Quando houve uma manifestação na universidade, destruíram tudo. No Brasil, encontrei pessoas fantásticas, professores fantásticos, o prof. Armando Sobral foi e ainda é o cimo, uma estrela extraordinária, através dessa vivência que ele cultivou com os companheiros, como ele dizia “os cavaleiros do Santo Graal”: eramos eu, o Pablo e o Armando. O nosso fim-de-semana começava na quarta. Íamos beber cerveja à beira rio e lá aconteciam as grandes conversas, os direcionamentos… Quando o Armando Sobral chegou, ele não foi meu professor, foi meu grande mestre, não no contexto universitário, mas no contexto de vivência. Armando Sobral delegou-me, a mim e ao Pablo, a montagem do núcleo de gravura da Fundação Curro Velho, em Belém, pela primeira vez, eu fui lixar uma prensa com 100 ou 200 anos…O Armando disse, “um artista deve acolher toda a instância de conhecimento”. Aí comecei e a aprender com ele. Comecei a trabalhar na serraria, não foi na gravura, foi a lixar ferro, a montar a desmontar.
Porque o livro impresso nasceu na Europa com Gutenberg…
Não, tu precisas de saber que há muita trapaça na história…O Gutenberg comprou a invenção da prensa mecânica a um artesão do povo e depois evoluiu essa invenção. O Rembrandt, por exemplo, comprou várias chapas de cobre com gravuras a artistas que precisavam de dinheiro que ele foi depois retrabalhar em cima, acabando por assinar com o nome dele. Quando compravas, naquela altura, era a tua propriedade. O livro, a banda desenhada, teve origem nos incunábulos que, eram interpretações do Evangelho, da Bíblia em tábuas com texto e imagem. Como a plebe era ignorante, não sabiam ler e evangelizavam através da imagem xilogravada.
Gosto muito de gravura, as gravuras em metal do Rembrandt são fantásticas… E mesmo as de Paula Rego são extraordinárias….
Rembrandt é um mestre, assim como Goya…Os Caprichos de Goya, as bruxas de Goya e toda aquela dimensão alegórica do sonho e do pensamento, não do obscurantismo, mas sim do imaginário pungente das bruxas…
É muito interessante…mas é preciso ter prensa, tens prensa para fazer em metal?
Tenho uma pequena prensa. Só que a única coisa que eu imprimi nessa prensa foi uma xilogravura, nunca mais imprimi com essa prensa…

Então, como é que imprimes a xilogravura?

Eu trabalho com uma colher ou com um baré. Gosto da minha impressão com colher porque é uma impressão bastante personalizada. Podes fazer uma edição sensata, mas, essencialmente, cada impressão tem um valor.
Podes falar-me um puco daquela peça que fizeste para o BOKA PANU, em 2018, o banquinho para ouvir morna, foi a única peça que fizeste para a URDI -– Feira do Artesanato e do Design de Cabo Verde

Fig. 6 – Bento Oliveira,’Benkin p´uvi Morna’ (Banquinho para ouvir morna, 2018.

Sim, imagina, a história da morna ainda não estava tão gritada. É uma outra estória. Eu dediquei aquele banquinho às minhas duas avós, à minha avó paterna e à minha avó materna. A minha avó materna tinha um banco na mesa que era dela. Se ela não se sentasse nesse banco, ela não se sentia bem. E a minha avó paterna tinha um banquinho que usava quando vendia no mercado pão, bolo. Então, dediquei esse banquinho às duas. Depois, na argumentação, comecei a desenvolver a escrita, abordei a dimensão telúrica, sentimental, memorial e afetiva e acabei dando um nome a este banquinho de “banquinho de ouvir morna”. Falei de amplitude ou de trama cabo-verdiana que desembocou na dimensão morna.

O que te inspirou, em termos formais?
A primeira inspiração foi quando comecei a observar os panos de obra. Observei e depois tirei um elemento do panú di terá e depois do pano singelo. Descobri que há um módulo que, ao encaixares consegues alcançar estabilidade. Peguei num elemento do pano singelo e coloquei em cima. Foi um estudo de dissecação, simplesmente. É de madeira de mogno selada com betume de Judeia.
O processo foi projetual? Fizeste o desenho e depois houve alguém que executou, ou foste experimentando com a madeira?
Fiz o desenho, e eu e o meu sobrinho Victor Fonseca, um jovem bastante arguto, estudante de arquitetura, apresentámos também um outro projeto, na última edição da URDI.
Portanto, para além desse banco, apresentaste algum outro trabalho para a URDI?
Este ano apresentámos o tchiloli, que é um instrumento de percussão, e apresentámos no Salão de Design da URDI a bacia do rosto sol da manhã, inspirada na música de Paulino Vieira. O banquinho surgiu depois, através desse encontro sentimental e humano que fui tecendo com a estória dessas minhas duas avós, sentadeiras de banquinho.
O CNAD tem apoiado o trabalho dos designers cabo-verdianos nas várias residências criativas que promoveu, como a Racordai, coordenada pelo designer cabo-verdiano David Monteiro, em 2019, ou a residência sob orientação de Kathi Stertzig e Álbio Nascimento através da The Home Project Design, onde participaram artesãos cabo-verdianos…
Gosto muito da metodologia do Álbio Nascimento. Vi bastante pujança nos trabalhos que decorreram depois dele vir para Cabo Verde trabalhar… Muito interessante. A meu ver, o seu trabalho ressuscita as essências das técnicas artesanais.
Qual a importância que, a teu ver, tem a colaboração entre artesões, designers e artistas?
É o caminho. Mas, a meu ver, os designers cabo-verdianos precisam de muita maturidade e mais interesse pela amplitude da cultura visual e criativa. Precisavam de compreender o essencial e ainda não chegaram ao essencial. Angustia-me o facto de Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD) sinta necessidade de contratar designers portugueses para fazer design da futura nova sede do CNAD. Não concordo em importar designers, trazendo um diferencial estético europeu para um espaço cabo-verdiano. Penso que há condições para reunirmos jovens designers cabo-verdianos e, com alguma orientação, chegarmos a um trabalho de qualidade.
Compreendo. Em Portugal também houve um período – creio que fruto do isolacionismo vivido na ditadura salazarista – em que achávamos que o que vinha do estrangeiro era sempre melhor… Agora creio que esse período já foi ultrapassado.
Há muitos cabo-verdianos que são filhos adotivos…para citar Tchalé Figueira “somos fruto de um orgasmo colonial”. Mas esse orgasmo há 500 anos que anda a evoluir, a partilhar, a construir, criando um diferencial visual, estético e de pensamento, e creio que devemos pegar nisso para promover o design cabo-verdiano. Eu não sou designer, sou um artista gravador. A minha incursão no design é extremamente escassa, talvez o meu pensamento seja algo que transcorre de uma certa maturidade. Mesmo a minha participação concreta no design tem sido bastante escassa….
Mas com os artesãos trabalhas muito, como se passa a vossa colaboração com os artesãos?
Eu comecei com os artesãos: em 2002, comecei à procura dos artesãos e em 2005. Geralmente, colaboro como o Dindin. Convidei-o e disse-lhe que podia fazer à vontade, começamos a conviver…Em 2002/2004 eu fiz uns desenhos. Na altura, dava aulas. Deixava os desenhos, as medidas, as espessuras. Idealizava tudo. Começamos a trabalhar. Depois, aquilo também tem a forma de tratamento do tabaco em rolo. Fomos visitar um senhor em Santo Antão que faz rolo de tabaco. Agora vou fazer o meu comentário sobre o ciclo de tabaco em Cabo Verde. Ele assimilou esse saber fazer e começámos a criar. Com a experiência do artesão, fui ampliando essas possibilidades. Comecei a cortar e a tirar filetes desta folha verde e a colocá-la à sombra e ao sol, criando assim diferentes tonalidades. Depois, fui urdindo as esculturas utilizando a técnica do rolo de tabaco para fazer o louro, mas em vez de tabaco utilizo a fibra de carrapato para construir os troncos (fig. 6) . Realizei as primeiras esculturas com um artesão Dindin (Arlindo Fortes) na procura da dimensão escultórica através da fibra de carrapato, uma procura que eu denomino, poeticamente, de “ilhar”, termo que está relacionado com “olhar” e também com “ilha”, com essa tremitar…
É alguma ligação ao tabaco ou é porque essas formas te lembram raízes na paisagem um pouco telúrica?

Utilizo-as porque evocam navegação, cordas de barco, figura humana, dissecação/síntese da figura humana e remetem para essa dimensão simbólica da seiva seca….
Agora, eu quero trabalhar com este material aqui. Vou recolher nas praias e vou fazer esculturas com este material. É tudo matéria-prima para trabalhar e reutilizar, plástico, madeira, como no trabalho que eu fiz esses dias no Carnaval, os andores, por exemplo.

Fig 7 – S/Título, Bento Oliveira, 2005

Mas, portanto, a tua colaboração com artesões é sempre com aquele ou vais trabalhando com artesãos diferentes?
Agora estou trabalhando com um latoeiro e estou a criar uma coleção de joias com a Marta Clemente. Vamos criar a coleção de lata e prata. Noutro trabalho, por exemplo, despertaram-me a atenção por umas fotografias no Facebook que encomendei e guardei. Essa forma interessou-me, então, vai-se transformando num pote. Depois vou para e Ilha de Santiago para conversar com um oleiro e realizá-lo. Adoro as técnicas tradicionais.
Algumas vezes os artesãos alteram o que tu fazes?
O Dindin sim, ele ajudou-me bastante na compreensão da dilatação, dessa possibilidade, porque percebem mais do material e aconselha.
Pode-se falar de uma colaboração, nesse caso.
Uma colaboração com o Dindin em termos das luas, dos meses. Não posso coletar, por exemplo, uma cana de caricé. A fibra de carrapato corresponde melhor assim. Estamos em contacto, às vezes ligo, só para conversar com ele ou para sonhar.
Mas quando fazes uma exposição, a autoria é tua?
Com o Dindin, sempre tem que ter o Dindin. Na minha primeira exposição o Dindin estava lá, com um tambor. Foi uma dimensão espiritual louca. Quando eu saí de Santo Antão pela primeira vez, em 2005, para fazer uma exposição de escultura em São Vicente, vim com o Dindin. Eu senti a falta de apoio do meu pai, que na altura, não ligava nada. Então, quando eu entrei no meu carro, virei- me para a minha mãe e disse – “mãe, eu vou com Amílcar Cabral no coração” que é a resposta cultural a partir da minha realidade: não bebendo em referências europeias para afirmar que sou um artista cabo-verdiano, fui beber a uma dimensão telúrica e a Amílcar Cabral orientou-me nesse processo. Vim para São Vicente, foi um acolhimento lindíssimo dos meus amigos e quem financiou essa exposição em Mindelo foi um amigo meu, Pedro Cruz e outro grande amigo meu, o Sr. Quintinha cedeu o espaço. A exposição no Centro Cultural de Mindelo era constituída por esculturas, inspiradas na obra de Luís Romano, a partir do livro “Negrume”. Foi a segunda exposição em São Vicente com esse material e os meios de comunicação não apareceram, não viam aquilo como arte e já estávamos em meados de 2000…
Podes falar-me um pouco na residência artística TEADA, realizada no âmbito da URDI, em 2018?
A residência TEADA foi extraordinária, porque deu uma intuição, foi extremamente inventiva. A Ariel que estava cá a trabalhar na sua tese de mestrado sobre os mandingas, tinha feito uma instalação no Centro Cultural de Mindelo e deixou um entulho de cordas, no Centro Cultural de Mindelo, para alguém ir buscar e ninguém foi. Eu disse-lhe que ia precisar desse material e ela disse que eu podia levar. Então, eu levei esse material e reutilizei-o para tecer a tapeçaria.
Porque, normalmente, as tapeçarias cabo-verdianas são feitas de algodão, certo?

Com algodão, tem todo um processo de tingir as meadas conforme a dimensão cromática da obra. Eu saí de um contexto tradicional e inventado por Manuel Figueira a partir da panaria tradicional e dei um pulo na inventividade do que eu tenho cá através da abordagem plástica desse material.

Fig.  8 e 9 – Nagual e Tonal, Bento Oliveira, 2018, detalhes

Está muito interessante a tapeçaria, tem um carácter muito tátil devido à utilização das cordas e da fibra de carrapato…
Também gostei muito da tapeçaria do Alex da Silva. O trabalho do Alex, realmente, tem uma estética de uma arte, assim, feita na Europa. Ele levou a dimensão da pintura dele para a tapeçaria e eu levei a dimensão da minha escultura para a tapeçaria… Eu não trabalhei com o Marcelino Santos. O Marcelino Santos trabalhou com o Manuel Figueira e com o Xande (Alex da Silva), os outros dois artistas convidados para participarem nessa residência. Eu trabalhei com dois jovens tecelões, sobretudo com um deles, o Helder Santos que acolheu, desde início, essa dimensão. Fiz o desenho, mas este foi simplesmente um trampolim tendo sido depois alterado, chegando até um estado de estranhamento em relação ao esboço inicial. Foi um momento extremamente genuíno porque nunca o vi trabalhar com o que vem de fora, as cordas de plástico, uma forma de amarrar barcos nos portos. Fui aqui nos armazéns da rua da Praia, na Vasconço, encontrei quem negociava essa matéria, mergulhei naquelas rondas de cordas à procura, no meio das cordas, e comprei uma ronda de corda preta que, num mês, ficou azul com uma tonalidade de turquesa para o negro. Não tingi as cordas. Foi o que se pode chamar, um acaso de criação artística. Fui usando estopa – como castanho – fibra de carrapato, pedra de lava, material orgânico, caniço, chumbo – no brinco da figura feminina – e os mastros que são uma presença muito forte no meu trabalho escultórico.
Estavas sempre com o Hélder Ramos ou observavas como ele ia fazendo e daí surgiam-te outras ideias para fazer?

Afastei-me estrategicamente para deixar o Hélder pensar. Mas, sabes, o pessoal ainda não tem essa dimensão da liberdade criativa e ficam sempre espantados diante dessa possibilidade. Pela primeira vez, o Hélder estava a fazer uma abordagem da tapeçaria diferente em Cabo Verde. Então, ele ficava assim – como dizemos em Cabo Verde -, “ficava fa”, em português “atónito”, e chamava-me. Eu ia e fazia o desenho. Fiz um trabalho com o cromatismo gráfico, onde existe uma certa dimensão figurativa. Não foi uma abordagem pictórica, mas sobretudo gráfica de tonalidades, recorrendo por vezes a degradés, outras passagens abruptas de cor, com um pensamento bastante neste mar e nesses mundos. É um pensamento MAR e AGRESTE cabo-verdiano…

Fig. 10 e 11 – Nagual e Tonal, Bento Oliveira, 2018, detalhes