Entrevista Rita Rainho

DESIGN / arte

Rita Rainho é doutorada em Educação Artística (2018) e Mestra em Arte e Design para o Espaço Público (2011), pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Portugal. É cofundadora da Oficina de Utopias – Arte, Design e Arquitetura, Cabo Verde.
Tem realizado inúmeros projetos de investigação e criação, sobretudo em colaborações e coautorias, tanto em África, como na Europa e África do Sul, como são exemplo, entre outros, o projeto  “Memórias para o Futuro: Projetar a Independência no Feminino(PIF)”, um projeto de investigação e criação com presença mais recente com a escultura audiovisual “Camara(as)” na residência criativa e exposição UPCYCLES, Maputo – Moçambique (2019), em coautoria com Ângelo Lopes; e a sua colaboração com o grupo Crioulas Vídeo na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas no Brasil, em 2007, 2008, 2017 e 2019 no âmbito da relação que o movimento intercultural IDENTIDADES com esta comunidade estabelece (este movimento desenvolve desde 1996 ações interculturais no sentido de promover a cumplicidade artística entre Portugal, Moçambique, Cabo Verde, Brasil e Portugal).
A sua atividade como artista e designer é indissociável de um comprometimento com o Sul Político, entendido, na linha de Boaventura Sousa Santos, não como o Sul Geográfico, mas como uma afinidade eletiva de resistência que se assume através de práticas relacionais que anulam as fronteiras entre os diferentes saberes. Nesta entrevista, Rita Rainho fala-nos da sua atividade como designer e da sua noção de design holístico que se reflete tanto nos projetos desenvolvidos pela Oficina de Utopias – Arte, Design e Arquitetura, como no projeto Neve Insular, desenvolvido em coautoria com a designer Vanessa Monteiro, desde 2018.

*Esta entrevista foi realizada a 20 de Fevereiro de 2019 em Mindelo,
Ilha de São Vicente, Cabo Verde.

Podias falar-me um pouco na Oficina de Utopias?

Eu e o Ângelo Lopes, arquiteto de formação e cineasta, criámos a Oficina de Utopias em 2015. Trabalhamos em várias áreas no sector criativo. Vou procurar focar-me na parte do design. Apesar de a minha formação de raiz não ser o design, apropriei-me do design numa lógica abrangente e, então, permeamos o design com a âncora na minha formação em Belas Artes. Temos um projeto a partir da colaboração com a designer Vanessa Monteiro, mas numa perspetiva holística uma vez que integra a parte de agroecologia, educação e, depois, o lado da criação. Então, é assim este design que tem outras coisas. Depois tenho o meu trabalho como artista e como investigadora.

Portanto, trabalhas com uma equipa, cada um faz a sua parte…

Aqui faço mais a parte conceptual, a direção criativa. Se for preciso, também faço design gráfico, mas não é a minha paixão. Temos mais um colaborador, o Gilardi Reis. A paixão dele é sobretudo a ilustração, ele também tem dupla formação: começou com arquitetura e depois design, é polivalente. Depois, dependendo do projeto, por exemplo, se for na área do cinema, envolvemos mais pessoas para a parte da captura imagem, som, edição, correção de cor. Normalmente, os projetos acabam por ter alguma duração e é necessário ter outras pessoas, constituir equipas. Eu adoro trabalhar com outras pessoas, há uma afinidade que se cria, um ritmo que me traz muito de volta à criação e ao desenvolvimento dos projetos.

Fig. 1 e 2 – Manual de Educação Artística par o 1º e 2º ciclo, Oficina de Utopias

Que tipo de projetos têm realizado?

Neste ramo do design, a Oficina de Utopias tem realizado projetos de design gráfico como, por exemplo, manuais escolares. Houve uma recente revisão curricular em Cabo Verde que prevê a conceção do manual por autores cabo-verdianos, assim como designers e ilustradores, nós temos trabalhado na parte da fotografia, paginação e ilustração. No caso do Guia do(a) professora(a) de Educação Artística para o 1º e 2º ciclo (fig. 1 e 2), fizemos um levantamento geral nas escolas para registar os próprios exercícios que os(as) professores(as) estão a fazer, criámos uma identidade visual que se ramifica na parte plástica, dramática e musical, as três linguagens que se integram num manual só. Agora, estamos a fazer de outras áreas disciplinares: matemática e língua portuguesa, geografia, história.

Fig. 3 e 4 – Os anos de Cólera, ilustração Oficina de Utopias

Temos também um projeto com algumas ONGs para a conceção de mapas e guia de turismo solidário e sustentável aqui da ilha, está na gráfica. Tal como os manuais, foi um desafio imenso pela necessidade de mergulho no terreno, pesquisa (Carlos Santos foi o historiador que assumiu connosco essa parte), e conhecimento mais próximo possível do território rural e comunitário da ilha.  Outros livros que fazemos, precisam de uma dimensão de ilustração como “os anos de Cólera” a Ilhéu Editora (fig. 3 e 4). E ganhamos o concurso do logo para candidatura da Morna a Património da Humanidade (fig. 5). Foi uma responsabilidade imensa. Partimos de uma pintura de Luisa Queirós, capa do Vinil Universo da Ilha de Vasco Martins para desenvolver o logo dentro do conceito desenhado Abraço d’ sodad. Colaborámos, também com o Mindelact Festival internacional de teatro do Mindelo, em 2017 e em 2019.

Fig. 5 e 6 – Logo para candidatura da Morna a Património da Humanidade, Oficina de Utopias

Fig. 7 – Cartaz Mindelact, 2017, Oficina de Utopias

Como foi o processo criativo destas duas imagens que realizaram para o Mindelact em 2017 e 2019?

Neste cartaz de 2017 (fig. 6), trabalhei com um dos nossos colaboradores, o designer espanhol Manuel Espino, com quem já trabalho há muitos anos, como designer e como performer. O Mindelact teve um slogan durante estes três anos que foi “arte, alma & afeto”. Na altura, em 2017, era uma nova direção que estava a assumir a Associação Mindelact e queriam romper, queriam uma imagem de marca. Então, começámos a trabalhar a partir da ideia do arquivo do próprio Mindelact e a primeira brincadeira começou com “levar o coração à cabeça”. Acabámos por escolher o coração para acompanhar esse slogan, que ficou como uma imagem de marca sintética do festival durante estes três anos, os troféus eram um coração que entregavam aos grupos participantes. Neste trabalhamos escolhemos este processo criativo que se baseia no envolvimento do próprio designer como sujeito da imagem e, a partir daí, tornámos o conceito mais forte e desenvolvemos toda a composição.

Fig. 8 – Cartaz Mindelact, 2019, Oficina de Utopias

O cartaz de 2019 (fig. 7), foi um trabalho com a designer Vanessa Monteiro. O conceito estava relacionado com a noção de que, quando se vive aqui nas ilhas e se vai a um Mindelact – no último ano foram 11 dias de programação intensiva – é como se se fosse envolvido num turbilhão de tudo o que as peças e as pessoas nos trazem. A imagem quer refletir essa efervescência de ideias e acontecimentos.

Fazem, geralmente um brainstorming do conceito?

Sim, trabalhamos em equipa. Nesta última identidade, montámos uma espécie de moodboard, desenhámos e começámos a passar para o digital. Quando apresentamos a imagem, geralmente, enviamos um briefing ao diretor artístico do festival, explicando de onde nasce a ideia e como se forma o conceito, porque é que são aquelas cores,..Por exemplo, no caso deste cartaz, o conceito orientador era estava ancorado num momento do ano no Mindelo em que Arte, Alma e Afeto são colocados no interior de cada um como uma espécie misturadora de emoções. A associação ao movimento da arte psicadélica vem dessa ideia de que o festival nos proporciona um turbilhão de experiência, diversidade e pensamento.
Todos estes projetos que referi são de design gráfico, sendo que a componente de ilustração é mais presente, não trabalhamos para empresas.

Fig. 9 -“Canhão de boca”, realização do Ângelo Lopes, design e edição Oficina das Utopias

Têm uma linha mais artística?

Sim, os nossos trabalhos são nossos ou destinados sobretudo ao sector criativo, artístico. Interessa-nos quando há uma possibilidade de conversa mais conceptual e de um resultado mais experimental, caso contrário, não, pois procuramos ser coerentes com a nossa forma de entender o design.

Depois, fazemos também os nossos projetos, de caráter mais transdisciplinar, assumindo vários aspetos da criação. Por exemplo, o documentário, “Canhão de boca” com realização do Ângelo Lopes que venceu o concurso DOC TV III da CPLP, 2018 e com o nosso trabalho de design (fig. 8). A D.Amélia Araújo, que foi ex-combatente da liberdade da pátria de Cabo Verde e Guiné Bissau e era locutora da rádio “Libertação”. Conhecemos a D. Amélia Araújo no âmbito de um projeto que já começou em 2015, o PIF, em que trouxemos aqui ao Mindelo, durante uma semana (Semana Working Independence) um conjunto das primeiras mulheres cabo-verdianas que participaram na luta da independência (fig. 9 e 10). Foi uma colaboração entre a Oficina de Utopias e o CIGEF/Uni-CV (Centro de Investigação e Formação em Género e Família da Universidade de Cabo Verde). Essa semana tinha uma componente mais académica que nós subvertemos um pouco pois, na verdade, os participantes não eram académicos, eram as próprias mulheres a falar da experiência delas. Contemplava, também, uma parte mais artística, constituída por uma exposição documental com base em todo o espólio que tínhamos conseguido reunir.

Fig. 10 e 11 – Semana Working Independence, Semana Working Independence, 2015

E claro há uma importância grande no design expositivo. A partir daí, conhecemos Amélia Araújo e começámos a realizar o documentário: a Amélia Araújo, como voz de Rádio Libertação e a Rosário da Luz –  uma ativista mais jovem, já não da geração da Amélia Araújo que na altura do documentário tinha 80 anos, mas uma ativista atual, pós-independência, das redes. Ela diz que o desporto favorito dela é a desconstrução da informação. Reuníamos, portanto, duas gerações diferentes para o questionamento intemporal da liberdade com foco na liberdade de expressão. O PIF, pela sua veia de investigação, dá origem a várias obras, momentos, e produtos. Neste caso, também fomos produzindo alguns artigos científicos, com participação no catálogo Still I Rise, Feminism, Gender, Resistance da Nottingham Contemporary e no livro As voltas do passado. A guerra colonial e as lutas de libertação. Também sobre esse tema, eu e o Ângelo Lopes realizámos, na residência artística UPCycles, uma escultura audiovisual que esteve na exposição homónima à residência, na Fortaleza de Maputo (fig. 11 e 12). Este projeto foi interessante, porque nos permitiu apresentar questões de pesquisa como possibilidade de interpretação artística. Neste caso, a nossa proposta consistia num glossário da mulher combatente. Juntámos uma série de termos – uns mais poéticos, outros mais irónicos -, e os próprios nomes delas faziam parte do glossário enquanto parte deste “dicionário” específico de nomes pouco ou nada conhecidos – que é o que define um glossário

Fig. 12 e 13 – Escultura audiovisual realizada no âmbito da residência artística UPCycles, Ângelo Lopes e Rita Rainho, 2019.

Faz-me lembrar um trabalho do vídeo-artista cabo-verdiano Irineu Destourelles…

Sim, exatamente. Essa era uma das nossas referências. Trabalhei com ele, em tempos, no M_EIA – Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura. Ficámos contentes com o resultado. Mais recentemente, estou a desenvolver o projeto Neve Insular com a designer Vanessa Monteiro. O projeto foi iniciado em 2018 no âmbito de um concurso de design que o CNAD (Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design) organizou, o BOKA PANU – o padrão da panaria cabo-verdiana enquanto matéria criativa. Inicialmente, escolhemos um dos elementos presentes nos panos, o símbolo do algodão, e começámos a matutar o que poderia ser o nosso projeto de design. São Vicente nunca teve produção de algodão. Onde havia produção de algodão, há vários séculos atrás, era na Ilha do Fogo e na Ilha de Santiago, mas essa produção extinguiu-se completamente. No concurso, optámos por não nos dedicar, à pesquisa do pano em si, e por retomar todo o ciclo do algodão. Encontrámos uma parceria no interior da ilha, no Madeiral, com a Associação Agropecuária do Madeiral e Calhau e iniciámos uma plantação de algodão orgânico. Na altura, era algo mais para a exposição, não tínhamos técnicos de agronomia. Era uma sementeira simbólica realizada com a participação do público da exposição. O público foi levado para lá de autocarro, isto em 2018.  Mas a sementeira não deu a produção desejada porque os solos não tinham sido preparados.

Fig. 14 e 15– Sessões de oficinas no âmbito do projeto Neve Insular

Entretanto, concebemos o projeto para a sua projeção em 2019 e conseguimos financiamento. Iniciámos o projeto com cabeça, tronco e membros. Para reiniciar a plantação, organizámos um conjunto de oficinas de agroecologia com os agricultores e agricultoras dessa associação que cedeu o terreno e, simultaneamente, trabalhamos a área da educação artística, com as escolas do vale do Calhau (fig. 13 e 14). Sempre aos sábados, reuníamos todos os participantes dessas duas gerações e organizávamos os conteúdos a partir do trabalho de resgate dos saberes da panaria tradicional, de forma a seguir o ciclo do algodão e a promover um contato experimental com a visualidade, a plasticidade e as fibras naturais. Foi interessante, porque, por uma lado, as crianças passaram a perceber que o algodão tem um princípio que é na própria terra e depois se transforma por nós. Por outro lado, da realidade rural dos agricultores acabou por fazer sentido esta oportunidade de experimentar a agroecologia, outras formas de cultivo que não a dos pesticidas, embora, este seja sempre um caminho a percorrer, porque alguns deles já tinham feito antes oficinas nessa área e é preciso estar sempre a renovar o interesse, pois é mais fácil comprar o pesticida e colocar, do que aplicar formas de cultivo mais ecológicas. Entretanto, ao nível da plantação, organizámos várias visitas à plantação.

Têm alguns apoios?

Não, eles vão produzir peças únicas, porque uma das coisas que nós queremos é explorar o lado material endógeno no design de produto e o material daqui não nos permite industrializar. Os designers que estão fora e tem produtos para vender também terão esse espaço aqui para o fazer, mas o objetivo principal é que as pessoas vejam o que é que os designers daqui fazem. O CNAD tem feito um papel muito bom nesse sentido, mas nós também temos de fazer a nossa parte e estamos a trabalhar para isso, dentro das nossas limitações.

As pessoas dizem que nós temos uma linha muito africanizada, mas é isso mesmo que nós queremos: queremos retomar as raízes africanas e o valor dessa cultura, realçando a sua beleza. Por exemplo, nos logótipos nós respeitamos muito a marca, mas tentamos sempre meter um bocadinho da nossa cultura.

Temos batido a todas as portas. Temos conseguido apoios no próprio CNAD e ano passado tivemos do Instituto Camões. Temos tido apoio técnico do Ministério da Agricultura, de consultoria da ONG Centro de Estudos Rurais e Agrícolas Internacional (CERAI), da ONG Associação dos Amigos da Natureza e da Associação Agropecuária do Madeira e do Calhau. Esta última, inclusive, copromoveu, com o CNAD, todas as atividades durante o ano de 2019. No ano passado, no âmbito da URDI – Feira do Artesanato e do Design de Cabo Verde de 2019, propusemos ao CNAD um conjunto de oficinas sobre o ciclo do algodão que foram integradas na URDI. Este conjunto de oficinas incluía uma parte que era dedicada à transformação do algodão (desde tirar a semente, descaroçar, cardar  até  fiar) orientada pelo mestre artesão local Marcelino dos Santos (fig. 15) que colabora sempre connosco e outra parte dedicada ao tingimento natural que incluía uma oficina com Flávia Aranha (fig. 16, 17 e 18), uma designer brasileira com 10 anos de experiência na área dos  tingimentos naturais. Não conseguimos fazer o tingimento com índigo ainda porque este pigmento tem um período de tratamento demasiado longo para o tempo que ela ia estar cá. Assim, Flávia Aranha utilizou o dragoeiro e a urzela e há o desejo de conseguir financiamento para ela voltar e poder continuar a investigar connosco as plantas tintórias locais.

Fig. 16 – Oficina Ciclo do Algodão no âmbito do projeto Neve Insular

Fig. 17, 18 e 19 – Oficina Ciclo Tingimento Natural O algodão no seu ciclo no âmbito do projeto Neve Insular

Primeiro, cultivámos 300m2 e agora temos cerca do dobro disponível. Este ano vamos plantar o restante. Estamos à procura de financiamento porque a primeira fase das plantas tem que ter uma irrigação gota-a-gota, o que implica um maior investimento. A mão- de-obra, é tudo um trabalho colaborativo.

Fig. 20, 21, 22– Recolha comunitária do algodão no âmbito do projeto Neve Insular

Mas ainda não passaram para a fase do tratamento do algodão?

Do algodão daqui não. Agora, em Janeiro, fizemos uma primeira recolha comunitária (fig. 19, 20 e 21). Organizámos um almoço com a associação e as pessoas da cidade de Mindelo que participaram. Em seguida, iremos fazer uma segunda recolha porque a plantação já está cheia de algodão. Estamos a programar fazer um período de “serviço educativo” – como provisoriamente denominamos-, antes de iniciar a nova plantação, no início da época da chuva, com o fim de formar artesãos emergentes. Esta formação é urgente pois não há ninguém aqui que saiba tratar o ciclo do algodão, exceto o mestre artesão Marcelino dos Santos. Na URDI de 2018, esteve cá uma artesã de Santo Antão com 86 anos mas, em São Vicente, a única pessoa que tem esses saberes e está operacional é o artesão Marcelino dos Santos. Com o apoio dele, temos também realizado os registos – da matéria-prima à transformação -, os quais nos permitem saber, por exemplo, que relações há em termos de quantidades e qualidades da fibra. Por exemplo, agora quando semeámos com sementes de algodão espontâneo que recolhemos, percebemos que havia duas qualidades. Vamos ter, assim, que fiar em separado para perceber a qualidade do fio. Tudo isso acaba por ser um trabalho de tentativa e erro, mas, os registos dessas experiências permitem que o trabalho não seja recomeçado do zero a partir do rasto da pesquisa que estamos a fazer.

Mas a ideia é reduzir a importação porque é algo endógeno, tanto ao nível do material como da tradição técnica?

O nosso objetivo, enquanto projeto, não é produzir matéria-prima para a indústria têxtil, mas produzir o suficiente, tanto para os artesãos emergentes como para as crianças e, também, para os artistas, para desenvolver a experimentação artística, a formação e a educação artística nesta óptica ambiental. Tivemos agora, por exemplo, um financiamento aprovado pelo ministério para uma residência artística que se realizará no Madeiral em Agosto só com o algodão da nossa plantação.

Vão fazer uma chamada de trabalhos aberta?

Pensamos convidar alguém do continente africano, esperamos que dos artesãos emergentes venham os que participaram anteriormente na oficina e que já tenham conhecimento do processo. Esse é um dos projetos que nos tem ocupado mais a um nível, quase macro, é design holístico.

Em 2018, qual foi a vossa participação para o concurso de design  BOKA PANU da URDI?

Participámos com o projeto Neve Insular. Este era constituído por uma sementeira simbólica no Madeiral e por uma instalação. Esta instalação era composta por uma colagem digital a partir da fotografia de arquivo dos anos 80 e por um conjunto alinhado de plintos onde havia umas caixinhas de pedra, executadas pelo artesão Albertino Silva, com as sementes para as pessoas levarem para sementeira, no Madeiral (fig. 22 e 23) 

Fig. 23 e 24 – Projeto neve Insular, 2018

E qual foi a reação das pessoas, aderiram?

Sim, foram lá. Havia uma camioneta que os levava do espaço da exposição à plantação, no Madeiral. Acho que, de início, as pessoas estranharam um pouco, porque não conheciam o projeto, mas agora já há mais interesse. Por exemplo, estamos a preparar um trabalho para concorrer a uma Bienal de Arte Têxtil e precisávamos de cerca de 10 figurantes para fazer a parte fotográfica, lá no Madeiral. No final, apareceram cerca de 30 pessoas. Tínhamos só uma carrinha Hiace, mas tivemos que alugar mais uma para todos poderem ir. Começa também a haver aquele encanto em ir para o campo e parar um pouco com suas rotinas. Para a colheita também foi um Hiace cheio daqui de Mindelo e foram 12 pessoas da associação.

Qual achas que é o impacto deste projeto nas pessoas?

Pensava, de início, que os agricultores não iriam estar interessados nessa sessão de fotografias, mas eles quiseram vir e andaram toda a tarde connosco a fazer de figurantes. Estabeleceu-se uma confiança, há respeito mútuo. Estamos a procurar melhorar a parceria de forma a também gerar rendimento os agricultores e fazemos sempre questão de as refeições e os transportes dos eventos serem sempre serviços pagos às pessoas da própria comunidade. Gera-se um incentivo e uma sinergia com colaborações enriquecedoras para nós.

E a tua atividade artística?

Tem um lado mais comunitário, ao qual podemos chamar de “arte relacional”, atualmente entendido como socially-engaged e community-based. Com a comunidade Quilombola Conceição das Crioulas no interior de Pernambuco, no nordeste do Brasil, colaboro desde 2007. Vou lá agora de novo em Março e mantenho uma relação estreita com eles sobretudo através do grupo Crioulas Vídeo, um grupo de audiovisual que foi criado. É uma comunidade politicamente muito comprometida. Para mim, é sempre uma grande aprendizagem política e de organização comunitária.

Em que consiste a vossa ação?

Eles têm as atividades deles que são organizadas pela Associação Quilombola e nós temos um movimento, do qual eu faço parte, o movimento Intercultural Identidades. No fundo, a associação decide o que é mais importante para eles que se faça e nós procuramos fazer parte. É importante para nós que não seja impositivo, de não estarmos em posição de ser nós a dizer o que gostaríamos de fazer lá, pois, claro, nós temos milhões de ideias, mas a comunidade é que tem que saber o que quer fazer. Por exemplo, inicialmente, antes de irmos a primeira vez, queriam formar pessoas criar um grupo de vídeo que para falasse sobre eles porque estavam cansados de irem lá outras pessoas de fora, como a Globo, entre outros, para falarem sobre eles: queriam criar as suas próprias imagens e registar os eventos deles. Então, começámos a trabalhar com eles mas não numa perspetiva de professores e alunos. Muito longe disso, até porque eu não sou uma especialista de vídeo. A ideia era pesquisarmos em conjunto e decidirmos o que era necessário, o que se ia fazer, como iria ser o roteiro, etc. Trabalhávamos com eles mais ao nível do questionamento do que a imagem representa, quem é que se está a representar, etc. E depois, experimentávamos em conjunto.

Têm apoios de onde?

O movimento Identidades nasceu a partir da Cooperativa Cultural Gesto. A partir do Porto, com professores e alunos da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto (FBAUP), como eu. Tínhamos uma loja-galeria no Porto, fazíamos feiras, leilões… O movimento é muito aberto, e as pessoas vão fazendo o seu caminho. Muitas delas, como eu também, foram fazendo carreira académica, estando agora muitos membros ligados à investigação. Mas, mantivemos em associação a esta parte da investigação as nossas atividades no relacionamento com as comunidades com quem já trabalhávamos, ficam para a vida. Assim, temos tido apoios, em alguns momentos, dos próprios centros de investigação ou instituições de que cada membro.

O que traz à tua atividade como artista a tua atividade como designer e vice-versa?

Por exemplo, a área da performance, traz-me imenso porque consigo, por exemplo, no projeto Neve Insular, mobilizar as pessoas através da minha presença. Considero os eventos quase acontecimentos performáticos, embora não sejam ritualizados a esse nível. Para a realização dos cartazes, permite fazer os ensaios fotográficos quase de foto-ação – como foi o caso do cartaz do Mindelact de 2017 – e também traz inspiração para a ilustração. Como tudo o que nós idealizamos vem muito de uma determinada expressão e de uma determinada composição que tem uma vertente artística, são áreas que acabam por se contaminar. Acho que é essa contaminação que mais nos diferencia de outros designers daqui.

E o inverso, do design para o campo artístico, acho que a questão da estruturação de um projeto, a resolução de um problema real, é fundamental e beneficia a prática artística socialmente comprometida. Ajuda-me porque a minha mente é muito mais caótica do que deveria ser a de um designer mais cartesiano.

É interessante também observar que na curadoria de exposições, é muito útil esta visão transdisciplinar. No caso das exposições que temos desenvolvido por exemplo as do CNAD, ou mesmo a do PIF, há uma forte componente de pesquisa, de arquivo, e um desenvolvimento conceptual que agrega imagens através de uma ideia que se quer desvelar. Graças ao domínio das várias disciplinas, e das várias pessoas envolvidas, é possível trabalhar em paralelo à pesquisa, as possibilidades técnicas e criativas que os espaços expositivos oferecem. Por exemplo em Força da Montanha em, que na própria galeria se lançou uma urdidura que ligava as fotos a conceitos chave, ou Morfose Voltar para o Futuro, em que se definiu uma estrutura em espaço público que permitia não só a projeção de colagem visual de metades de objetos do espólio do CNAD como uma interação com os painéis que abria as possibilidades de percepção da obra.

Fig. 25 – Força da montanha, curadoria Oficina de Utopias

E na área da produção cultural, a tua atividade como designer ajuda-te a estabelecer parcerias, a arranjar financiamento para os projetos de cariz mais artístico?

Sim, se não soubermos montar um dossier e fazer com que seja atrativo, fazer um briefing, torna-se mais difícil.

 Porque os projetos não são projetos que se vendem como uma pintura…

Vende-se só a ideia. Sim, acho que é muito útil, como referi, no início, nós começámos a fazer design para as nossas atividades de cariz artístico e depois começámos a perceber que aí havia uma fonte de rendimento e que havia uma procura de algo específico. Acho que se sente, essa lacuna. A meu ver, há pouca gente a fazer algo com pesquisa por detrás, o que é necessário, porque, por exemplo, no caso dos manuais, se não vais às escolas, não sabes o que está a ser feito.

E, finalmente, quais são, a teu ver, as vantagens/desvantagens de exercer a atividade como designer aqui nas ilhas?

Uma das maiores dificuldades é mesmo um método de trabalho na cadeia toda. Porque, depois, no relacionamento com as pessoas, a dificuldade é mesmo uma certa resistência a tudo o que não seja clássico. Então é uma luta. Por exemplo, no caso, dos manuais escolares, a maior dificuldade que temos é conseguir que se implemente um certo método, para que as coisas não cheguem às mãos do designer sem ter passado por uma revisão linguística e científica e pelo acordo mútuo entre os autores e os ministérios. É clássico termos que fazer o manual todo outra vez. No Manual de Educação Artística por exemplo, desde o início que propusemos que determinadas a cada linguagem ficasse associada uma gama de tons, porque o manual incluía três linguagens, Plástica, Musical e Dramática. Depois, houve um conflito porque achavam que o livro não era suficientemente colorido. Percebemos também que havia uma crise em relação à cor da pele que, nas ilustrações, tinha o tom da linguagem (verde, lilás e salmão) porque não era a cor da pele “real”, e acabámos por encontrar soluções gráficas que respondessem às várias perspetivas. Quando propomos algo não é, simplesmente, por ser diferente, mas para que as crianças tenham uma fácil leitura de forma lúdica. Coisas simples, mas que para nós são importantes, por exemplo, a existência de um separador de dupla página para permitir haver uma respiração, um marco visual. Há um equilibro que precisa ser encontrado entre uma cultura visual local que reforce aspetos identitários, mas também uma rutura com algumas ideia pré-formadas sobre o que nos representa e como representa.