Entrevista Anayka Bettencourt

DESIGN

Anayka Bettencourt nasceu em Luanda, filha de mãe angolana e pai cabo-verdiano. Formou-se em marketing e publicidade no IADE, Lisboa. No último ano do curso decidiu, juntamente com três colegas do IADE,  ir para o Brasil a fim de adquirir experiência profissional no design, especializando-se no design de comunicação. Alarga a sua experiência profissional e, de regresso a Luanda, cria, em 2013, a marca registada “Zungueira”, nome que designa as vendedoras ambulantes que trazem a mercadoria equilibrada na cabeça e que fazem parte da paisagem quotidiana africana.

Nesta entrevista, Anayka Bettencourt reflete sobre o percurso da Zungueira que prossegue, em Cabo Verde o seu objetivo de criar uma linha gráfica que valorize os símbolos culturais identitários dos países africanos. Residente atualmente em Mindelo, na Ilha de São Vicente – e com a colaboração, desde há 4 anos, da designer Stephanie Oliveira –  Zungueira tem prosseguido a sua linha, criando vários produtos que enaltecem a riqueza cultural cabo-verdiana traduzindo-a numa linguagem contemporânea, como, entre outros,  Spotlight, um candeeiro inspirado nos padrões do panú di téra.

Podes contar-me um pouco como foi o teu percurso como designer em trânsito África/Portugal/Brasil?

Sim, nasci em Luanda. Eu sou de origem cabo-verdiana, filha de emigrantes, a minha mãe é angolana e o meu pai é cabo-verdiano. Vivi lá até aos 17 anos. Depois fui para a África do Sul onde residi durante uns anos antes de ir para Portugal fazer um curso de marketing e publicidade no IADE. Depois fui para o Brasil fazer estudar comunicação ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing. No fundo, o que me levou para o Brasil foi querer descobrir o que é que queria fazer dentro da área da comunicação. Quando sais do curso ficas um bocado perdida e eu queria encontrar o meu caminho. Tive design gráfico na faculdade, mas faltava-me experiência numa agência de comunicação e fomos lá fazer o curso de comunicação.
Eramos quatro todos da mesma turma do IADE. Cada um trabalha atualmente em áreas diferentes, nenhum de nós seguiu a mesma área: um está em produção, outra é redatora e o outro trabalha com a comunicação de moda. Peguei no design gráfico porque percebi que era aí que estava a minha vocação. Foi nessa altura que comecei o meu primeiro emprego no departamento de comunicação, no Hotel Porto Grande. Tinham uma discoteca e um espaço de entretenimento. Na altura contrataram-me a mim e a outra pessoa das relações publicas para dinamizar esse espaço e estava incumbida da parte de design gráfico. Depois fui para Luanda durante um ano, onde fui ativa como freelancer. Naquele percurso inicial, fiz algumas marcas, e então entrei na primeira agência de publicidade, no grupo Zwela, em Angola. Estive lá quase 4 anos, depois vim para Cabo Verde, o meu marido é daqui, tive uma filha, viemos aqui par Mindelo e recriámos a Zungeira.

A Zungueira é só tua?

Por enquanto é só minha. A Zungueira advém da constatação de um problema: eu via que as pessoas olhavam para Angola só como fonte de petróleo, diamantes e mais nada. Era só dinheiro, tudo era à volta de construir riqueza material, mas nós temos uma riqueza cultural muito rica e são coisas que se estavam a perder.

O que significa Zungueira?

Zungueira significa as vendedoras ambulantes que andam pelas ruas a vender coisas que carregam nas cabeças. É daí que surge o “De Angola com amor”, a zungueira. Entretanto, vim para Cabo Verde procurar essa conexão com a matriz africana, pois a história de Cabo Verde é mais recente que Angola, no sentido que Cabo Verde foi encontrado desabitado e foi povoado pelos colonos e pelos escravos, sendo que Mindelo é das ilhas que foi povoada mais recentemente quando serviu de entreposto aos barcos carvoeiros ingleses no séc. XIX. Existe, nesse contexto, um certo ativismo da minha parte, no sentido em que tenho a ambição de contar as histórias através dos nossos olhos, mostrando a nossa estética visual e as nossa linhas visuais. E a Zungueira surge neste contexto. Fomos buscar esses ícones culturais e seguindo a mesma linha de pensamento, começámos a trabalhar em Cabo Verde. 

Fig.1 e 2 – Zungueira – Design & Comunicação

Mas a ideia surgiu em Angola?

Sim, em 2013, mas vim criar a empresa cá em Cabo Verde na mesma sequência de ideias.

Podes falar um pouco no tipo de projetos que têm realizado?

Trabalhamos em branding, dentro da realidade especifica de Cabo Verde. Tenho uma designer a trabalhar comigo a tempo inteiro há quatro anos, a Stephanie Oliveira.  Começámos a concorrer a concursos públicos. Primeiro comecei sozinha, com logotipos e brindes, entre outros. Depois, juntas, começámos a concorrer a concurso públicos e fomos fazendo, dentro das nossas limitações.

Fig. 3, 4, 5 e 6 – Cartazes e logotipos criados pela Zungueira

Têm conseguido autossustentar-se?

Devagarinho, o mercado é muito pequeno, mas já conseguimos pagar as contas… O processo de crescimento de uma empresa aqui é mais demorado que noutros locais. Agora estamos numa fase boa. É demorado, porque as pessoas no geral, e até os próprios empresários, não conhecem bem a área. Mas começaram a sentir a necessidade de recorrer ao design por verem outros fazer. Muitas vezes queriam simplesmente copiar, mas as coisas não podem ser feitas assim e vou tentando explicar que posso usar essa linha visual, mas com uma identidade diferente.
Quem procura mais o nosso trabalho são as microempresas, que são criadas por pessoas mais jovens e que tem noção da importância de ter um logotipo, um cartão- de-visita e uma etiqueta com um design apelativo. Agora estamos a dar um passo maior, pois sentimos a necessidade de criarmos nós próprios os produtos. Criámos uma Concept Store, um espaço para os designers começarem a vender os seus produtos e onde vamos ter várias marcas.
O único requisito que temos para a Concept Store é que o recurso design thinking seja feito por designers cabo-verdianos, podem ser da diáspora, mas têm de ser cabo-verdianos: acho que é bastante importante para valorizar e dar visibilidade ao design cabo-verdiano.

Mas também existe aqui uma loja que se chama “Cabo Verde Design” certo?

A loja Cabo Verde Design trabalha muito com artesanato. A nossa ideia é mostrar o que está conceptualizado a nível do design. Por exemplo, temos um designer que faz candeeiros e que tem a sua marca, mas não tem um espaço para vender os candeeiros: a ideia foi arranjar um espaço para ele e os outros designers poderem expor os seus trabalhos e vendê-los. Para além disso, pretendemos estimular os designers a concretizarem os projetos, pois muitos deles não passam os projetos do papel. Há designer com projectos interessantes no papel, como brinquedos infantis, sustentabilidade entre outros, mas as condições financeiras cá não permitem aos designers darem aquele passo, então nós temos de dar aquela ajuda.

Então, vão estar expostos protótipos?

Não, eles vão produzir peças únicas, porque uma das coisas que nós queremos é explorar o lado material endógeno no design de produto e o material daqui não nos permite industrializar. Os designers que estão fora e tem produtos para vender também terão esse espaço aqui para o fazer, mas o objetivo principal é que as pessoas vejam o que é que os designers daqui fazem. O CNAD tem feito um papel muito bom nesse sentido, mas nós também temos de fazer a nossa parte e estamos a trabalhar para isso, dentro das nossas limitações.

As pessoas dizem que nós temos uma linha muito africanizada, mas é isso mesmo que nós queremos: queremos retomar as raízes africanas e o valor dessa cultura, realçando a sua beleza. Por exemplo, nos logótipos nós respeitamos muito a marca, mas tentamos sempre meter um bocadinho da nossa cultura.

Fig. 7, 8 e 9 – Spotlight, Zungueira-Design & Comunicação, 2018; pánu di téra cabo-verdiano

Como é que surgiu a ideia do candeeiro Spotlight?

Surgiu no contexto do concurso de design BOKA PANU, promovido pela CNAD no contexto de URDI, Feira do Artesanato e do Design de Cabo Verde de 2018. A primeira peça que nós quisemos criar através do panú di téra era uma jóia preciosa, que tivesse tanto valor como o do ouro ou da prata, mas que também tivesse um valor histórico e afetivo. Neste sentido fomos buscar uma técnica que é portuguesa, a filigrana, integrando um pouco, também da história da colonização. Com base nessa técnica, pensámos em reaproveitar os fios da eletricidade. Por acaso, os fios da eletricidade não são muito deitados fora porque são transformados em cobre e são revendidos, mas tentámos aproveitar aquele desperdício caseiro, construindo através daquela técnica. Daí surgiu o Spotlight. A ideia era usar a padronagem do panú di téra como inspiração, e usarmos também para o abajur, ligando a ideia de tecelagem à técnica da filigrana. Porque a tecelagem também é feita fio por fio, à mão. Com base nestes cruzamentos, projetámos a imagem do pano de terra através da luz. À primeira vista o candeeiro é um objeto banal, mas quando se acende  projeta toda uma variedade de padrões no espaço envolvente. Mais do que ter o padrão no abajur era todas as possibilidades que podiam sair desses padrões e foi com base nisso que surgiu.

Também apresentaram a joia?

Sim, mas eles consideraram que não era tão boa e ficaram só com o candeeiro que é um protótipo e é propriedade do CNAD.

O candeeiro foi concebido por quem?

Por mim e pela Stephanie Oliveira e depois foi produzido aqui por uma oficina Lizardo, em São Vicente. Depois nós também nos inspirámos na ideia do Ikea e fizemos uma peça que é de abrir e fechar. Não é grande, pensámos na ideia de sustentabilidade e, ao mesmo tempo, do souvenir, do facto das pessoas poderem levar um bocadinho de nós.

Obrigada pela entrevista.