Entrevista a João Carlos Silva

ARTE 

João Carlos Silva (nasc. 1956) nasceu em São Tomé, onde vive. Frequentou a Faculdade de Direito de Coimbra, foi jornalista e participou em várias exposições coletivas de artes plásticas em S. Tomé e no estrangeiro e é o diretor da Bienal de Arte e Cultura de S. Tomé e Príncipe.

Desde muito cedo trabalhou no sentido de formar jovens artistas são-tomenses através da criação da galeria Teia D´Arte que funcionava não apenas como um local de exposição, mas como um espaço de formação através de workshops realizados por artistas convidados – como o senegalês Seyni Gadiaga e a californiana Debora Miller.  Ali se formou a chamada 3.ª geração de artistas são-tomenses – como Geane Castro, Adilson Castro, Eduardo Malé, Kwame Sousa e René Tavares – alguns deles atualmente com reputação internacional.

Em 1994 cofundou a Associação Roça Mundo – com Isaura Carvalho – a qual passou a Fundação em 2002. Na sequência deste projeto foi criado o CIAC – Centro Internacional de Arte e Cultura,  em 1994, tendo mais tarde dado origem à CACAU – Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopia, um projeto de maior dimensão que realizou a 1ª Bienal de Arte e Cultura de São Tomé e Príncipe, em 1995.

Nesta entrevista, realizada na Roça de São João dos Angolares, durante a VIII Bienal de Arte e Cultura de São Tomé e Príncipe, 2019, João Carlos Silva, fala-nos das Bienais e, em especial, do projeto FACA – Fábrica das Artes Ambiente Cidadania Activa Trans(f)ormar o local, em Água Izé, o qual dá corpo a uma aspiração de há longo tempo de JCS: recuperar as roças e trazer a população de volta das periferias urbanas para as roças, através da implementação de ações sustentáveis que promovam o desenvolvimento económico-cultural, como a arte, o artesanato, o  ecoturismo ou o turismo cultural.

VIII Bienal de Arte e Cultura de São Tomé e Príncipe, 2019

De que forma, a seu ver a bienal/a arte podem contribuir para uma transformação social no contexto particular de São Tomé e Príncipe?

A bienal, para além de, como outras bienais do mundo, promover a arte contemporânea, no caso de São Tomé e Príncipe, vai mais longe, pois está a provocar, está a mexer, com uma série de cabeças de gente, jovens e adultos, desafiando instituições, públicas e privadas. Esta bienal começa com o título maior que é “São Tomé e Príncipe, de entreposto de escravos a entreposto cultural”, e foi sofrendo as suas naturais evoluções. Nós andamos para trás e para a frente, às vezes, como o caranguejo, depois de darmos dois passos à frente, damos um à retaguarda, para recordar Lenine.  Esses passos servem para nós refletirmos e analisarmos em que medida a bienal serve para alguma coisa, se estamos a falhar – e falhamos sempre – e se falhamos, em que medida é que podemos corrigir.

A 1.ª Bienal foi em 1995, aqui na roça onde estamos agora [Roça de São João dos Angolares]. Depois, foi alargando-se e tornando-se cada vez mais num movimento pela cidadania, de assunção de uma responsabilidade coletiva ativa, sobretudo por parte de um grupo de artistas dos quais os mais jovens se foram formando na galeria Teia D´Arte. Esta, num primeiro momento, acabou por ajudar a nascer artistas de renome internacional – René Tavares, Olavo Amado, Geane Castro, Catita Dias, o último da geração mais nova –  e também constituiu um espaço de tertúlias onde o poder da palavra estava moradora. Fizemos uma série de conversas intituladas “Falar de nós”, tendo o atual primeiro-ministro [Jorge Bom Jesus] colaborado connosco enquanto cidadão e responsável de um dos departamentos do Ministério da Educação na altura, assim como uma futura ministra da Educação e Cultura, Fernanda Pontífice, minha amiga de longa data. Nós enchíamos o espaço da Teia D´Arte, o qual era um espaço embrionário de formação artística e que resultou no nascimento de vários artistas: para além de espaço de formação de arte, era um espaço de formação para a vida tendo funcionado, de certo modo, como uma antecâmara para a CACAU.

Voltando mais especificamente à sua pergunta, as bienais têm continuidade na CACAU, e têm contribuído para a autoestima dos são-tomenses. Os artistas voaram para o mundo e aprenderam outra coisa extremamente importante que as bienais têm promovido: voar para o mundo mas não esquecer as nossas raízes, o nosso berço, o nosso chão.

As bienais têm também fundamentado o turismo cultural que penso que é um dos segmentos de turismo que crescerá mais, como mostram trabalhos feitos pela Organização Mundial do Turismo que apontam nesse sentido. O turismo cultural, o turismo ecológico, o turismo rural, o turismo de educação, são os nichos do turismo que mais crescerão nos próximos tempos e São Tomé e Príncipe que tem condições naturais e patrimoniais interessantes para fazer isso mesmo.

FACA - Fábrica das Artes Ambiente Cidadania Activa Trans(f)ormar o local

Qual o envolvimento da população com a bienal, para além dos artistas que nela participam?

O envolvimento da população com as bienais, numa primeira fase, era um pouco apático, as pessoas questionavam-se “o que esta gente maluca faz”, mas depois começaram também a apropriar-se das bienais. Esse envolvimento tem vindo a crescer de várias maneiras. Por um lado, porque nós empregamos gente que não é artista – os artesões, desde marceneiros, carpinteiros, etc. – que ajudam a fazer uma série de coisas para a bienal; depois porque, direta ou indiretamente, estamos a implicar com as famílias dessas mesmas pessoas, porque são muitas. Por outro lado, nós começámos a levar à sede da bienal, a CACAU – particularmente nos últimos anos, nós temos uma carrinha grande – gente de todos os distritos para irem às bienais. Só para ter uma ideia, na última bienal, na VII bienal, levámos cerca de 15.000 jovens das zonas do interior para a bienal e agora, na próxima semana, vamos desencadear outra vez este processo. Mas, ao mesmo tempo, vamos ter, ainda este ano, “CACAU sobre rodas” que é levar, não as obras dos artistas internacionais que estão na CACAU – pois é um compromisso que temos de devolver as obras no fim da bienal – muito do que a CACAU tem no seu acervo. Vamos ter uma biblioteca itinerante em homenagem à Isaura Carvalho – assim como fizemos o museu em sua homenagem: vamos ter uma carrinha com livros e obrigar – quase, estou a brincar, apontando uma arma para as pessoas começarem a ler – mas isso também vai acontecer com a biblioteca que temos paredes meias com a Baià da Bô. Este é um nome muito sugestivo: pode ser “uma baia para ti”, ou para sermos uma baia apelativa, interessante, não suja, com arte e com cultura; ao mesmo tempo questiona se “vamos rogar uma praga” para aqueles que estão a fazer isso tudo em São Tomé e Príncipe nesta altura. Digo “esta altura” porque é uma altura em que questionamos muito o presente: as coisas não estão muito bem e os são-tomenses têm que ser mais provocados. Então, a Baià da Bô evoca a feiticeira no melhor sentido da palavra – não feiticeira para matar, mas para acordar; é esse o nosso jogo, a nossa praia. Assim como há música boa e má, arte boa e má e cozinha boa e má, também há a feiticeira boa e má. Incentivamos a feiticeira boa, pois a boa é aquela que não mata, mas que provoca, desassossega, aponta caminhos, questiona, e a bienal começa a agir nesse sentido.

FACA - Fábrica das Artes Ambiente Cidadania Activa Trans(f)ormar o local

Depois de a bienal acabar, o que irá restar? Será dada continuidade a alguns trabalhos iniciados?

Sim, a bienal deixa rastos – alguns bons e outros não tão bons, como tudo na vida. As bienais existem, antes de tudo, antes, durante e para além, existindo muito mais vida para além do evento, quando se fecha a lojinha ou a tasca, há coisas a que depois vamos dar continuidade, tanto às que nasceram e às que não nasceram com a bienal. Vamos continuar, por exemplo, na área da fotografia e do vídeo – queremos fazer muito trabalho nestas áreas. Queremos aproveitar para começar já a trabalhar para o futuro e isto é muito importante se não queremos que haja interrupções tão grandes como nos outros anos.

A galeria Baià da Bô não nasce na bienal mas é mostrada durante a bienal, ela faz o seu próprio caminho. É um espaço alternativo à CACAU, mas é um espaço que a complementa. São mais ou menos os mesmos promotores. A FACA, em Água Izé é muito mais profunda sobretudo porque está a trabalhar com gente pobre. Então nós, aí, mais do que arte contemporânea, queremos fazer nos artesãos locais e nos que nós vamos formar a ideia e o exercício da arte e do sustento. Queremos ajudar aquela população a cortar com a faca: aquilo que corta no mato vai cortar na fábrica. Esta é sobretudo uma fábrica de ideias, de iniciativas, boas iniciativas, mas de concretizações, porque as pessoas estão cansadas de promessas e como nós não criamos o nosso partido político, estamos em condições de trabalhar muito mas sem fazer promessas e trabalhar muito significa cortar aquela parte da comunidade – não a comunidade toda, não temos condições para isso, nem o objetivo é esse, nós queremos criar grupos de ação local, de intervenção local, grupos que ficam com as ferramentas locais. Assim, evidentemente, que temos uma responsabilidade acrescida: não podemos formar gente e depois deixar essas pessoas à sua sorte; nós temos que dar todo o carinho e todo o apoio para depois poderem também marchar sozinhos.

FACA - Fábrica das Artes Ambiente Cidadania Activa Trans(f)ormar o local

 O projeto A FACA é da Roça Mundo?

Tem parceria com a Roça Mundo mas é uma loucura minha. Se a Roça Mundo não aguentar nas canetas, eu próprio vou conseguir, o João Carlos Silva vai ter que dar a cara e a continuar a fazer coisas deste tipo até porque eu consigo, através dos programas de televisão e do que faço fora das instituições a que estou ligado, ter condições para fazer pequenos milagres…

FACA - Fábrica das Artes Ambiente Cidadania Activa Trans(f)ormar o local

Tem algum projeto para a próxima bienal?

A próxima bienal vai ser cada vez mais voltada para dentro de nós e o título maior é “ A descoberta de nós”. Vai ser de 25 de Junho a 25 de Julho, apanha o dia 25 de Junho, dia nacional de Moçambique, o dia 5 de Julho, dia nacional de Cabo Verde e o dia 12 de Julho, dia nacional de São Tomé e Príncipe. Queremos fazer uma viagem à descoberta de nós, quem foi convidado para nos parir e quem, de certo modo, esteve sempre na génese desta síntese que é hoje São Tomé e Príncipe e os são-tomenses, os que entraram e os que saíram, as diásporas. Queremos revisitar as diásporas interessantíssimas, os são-tomenses que estão em Cabo Verde, no Gabão ou em Moçambique, mas também noutros lugares mais distantes, noutros mares, noutros continentes, mas que, de certo modo, também têm uma palavra a dizer sobre o futuro de São Tomé e Príncipe. À descoberta de nós e olharmos, muito seriamente, para o futuro destas duas ilhas plantadas no meio do oceano.