Entrevista a António Dantas

ARTE

O artista madeirense António Dantas (Funchal,1954-) foi um dos dinamizadores do movimento de Poesia Experimental Portuguesa, tendo criado com António Aragão a revista Filigrama. No campo da eletrografia e da vídeo arte, a sua obra caracteriza-se manipulação e distorção de imagens – acompanhadas por vezes por linguagem verbal – e pela sua dessemantização poética atravessada pela ironia.

Juntamente com Silvestre Pestana e António Barros criou, em 2001 a bienal What is Watt? projeto artístico interdisciplinar que reúne artistas que partilham o gosto pela exploração plástica dos diferentes meios tecnológicos existentes.

Nesta entrevista, António Dantas reflete sobre a importância de António Aragão na cena artística da Madeira e sobre o papel da poesia experimental no seu trabalho no contexto da efervescência dos anos 80 e 90 e do surgimento da galeria Porta 33.

Podes falar-me um pouco da aplicação da técnica das escamas de peixe na ilustração?

Sim, estavam cá o Gilberto Gouveia e o Rigo 23 – isto antes de ele ir para São Francisco. Houve um momento de uma certa contestação. Realizou-se uma feira de arte, um evento que unia uma série de galerias numa escola onde as salas foram transformadas em espaços públicos de exposição. Como o meio era um pouco retrógrado e nada acontecia, fizemos uma espécie de ato criativo que se chamava “arte barriga”.Barriga” porque eramos jovens, comíamos um bocadinho e estávamos cheios de fome. Foi para mim importante também ter conhecido o Gilberto Gouveia que tinha uns vídeos de umas performances poéticas que eu gostava muito; foi o melhor que vi a nível de poesia e performance.

António Dantas, S/Título, electrografias, 2005

Podes falar-me um pouco sobre desse período marcado por performances espontâneas e intervenções efémeras no vosso grupo?

O Funchal era um meio muito restrito em termos culturais. No entanto, havia uma pessoa como António Aragão. Aprendemos muito com ele, foi uma fonte de inspiração e de estímulos também. O nosso grupo era um pouco uma reação à mediocridade local.  

Comecei a fazer eletrografias antes dos anos 80, muitas das quais estão agora perdidas. A partir desses trabalhos fiz sequências fotográficas, depois comecei a fazer vídeo, fiz um vídeo, o Ego Eco, 1987…. Gostava de experimentar novos usos das tecnologias e de explorar os efeitos de tudo aquilo que é fora do normal, de explorar a imagem e de filmar através do ecrã degradante, para criar ruido. Depois deixei de usar o vídeo durante muitos anos.

O grupo nasceu porque nós – como todos os jovens – costumávamos  juntar-nos para beber uns copos e, para não ser entediante, pensávamos  em coisas artísticas.

As minhas primeiras tentativas de expressão foram através da escrita, da poesia. Depois, a parte visual começou a ganhar preponderância. Aragão teve um papel fundamental nessa viragem. Tínhamos feito uma cooperativa, fizemos algumas coisas, entre as quais uma exposição em São Francisco.

Houve uma exposição que foi fundamental para mim, Impressões, 1996, na Porta 33. Era um trabalho em grande escala, constituído por sequências ortográficas…

Qual foi a tua relação com a poesia experimental e concreta?

Interessava-me esse tipo de poéticas que eram novas e experimentais mas o que mais me marcou foi a minha ligação com o Aragão, a qual surgiu, sobretudo, através do nosso gosto partilhado pelo cinema, encontrava-me com amigos e depois começávamos a conviver com o Aragão. Foi um pouco por aí…

Antes da revista  Filigrana  apareceu a loja da Xerox que foi, de certo modo, uma porta que se abriu para fazer impressões e fazer revistas. Começamos, então, a pensar em fazer um fanzine. Foi quando o Aragão se interessou pela tecnologia e depois, ao conseguir obter a máquina Xerox – por ser, na altura, diretor do Arquivo Regional da Madeira – possibilitou o surgimento do Filigrana, adquiríamos o papel e usávamos a máquina. O Filigrana foi feito por nós na medida em que os correios eram baratos. Fazíamos os envelopes, púnhamos os carimbos e mandávamos para vários sítios.

O movimento também tinha uma lista de mails, contactos, pessoas internacionais?

Sim o Aragão tinha essa lista. Tínhamos vários contactos, era assim algo gratuito que enviávamos às pessoas. Tenho pena que tenha sido tudo destruído. Na altura o Aragão tinha um espaço em Lisboa, na Lapa. Quando adoeceu, ficou outra pessoa a tomar conta do espaço. Entretanto, o espaço precisou de obras de restauro e quem estava encarregado das obras viu os papéis e os envelopes e pensou que não fosse nada de importante e deitou tudo para o lixo. Havia lá trabalhos originais que desapareceram.

Então, era o António Aragão que trazia as informações de fora para os jovens da ilha que estavam sedentes de coisas novas.

Quando Aragão descobria algo interessante, ficava muito entusiasmado e focava-se logo nisso. Entretanto, tinha surgido uma câmara portátil que a Sony tinha lançado. Foi a primeira câmara que era uma Beta. O Aragão comprou-a e fizemos algumas experiências. Depois eu acabei por ficar com a câmara e fiz o Ego Eco. Depois, quando apareceu a MTV, deixei de fazer vídeos…

Ficaste desiludido?

De certa forma…quer dizer quando se começa a ver muita tecnologia…Eu trabalhava muito as imagens no sentido da manipulação onde a montagem era muito complicada.

Hoje em dia já é mais fácil?

Sim, é mais fácil. Mas de qualquer maneira há um fator que pertence ao artista e por vezes, este acaba por deixar arrastar-se pela mediocridade….Já não sei a que a mediocridade se deve: se ao meio, se ao próprio artista…

A partir dos anos 80 começou a haver no Funchal uma cena mais a par com os movimentos internacionais…Como foi?

Sim, estabeleceram-se alguns contactos, mas depois a cena artística começou a esgotar-se um pouco…

Pelo que percebi, fazes as coisas sobretudo pelo gozo e não tens preocupação em deixar as coisas para a história, por isso não há praticamente  documentação desse período…

O Aragão então era pior que eu, não fotografava os seus trabalhos nem fazia registo, tendo-se depois focado mais na parte literária. Antes da poesia ele pintava e o Filigrana trouxe-o novamente a experimentação visual.

Portanto nos anos 80, o António Aragão era a figura disseminadora da cena artística no Funchal e a Porta 33 começou também nessa altura?

A Porta 33 surgiu numa altura em que o Aragão começou a ficar doente. O Filigrana tinha esgotado os nossos interesses e em 1991, nasceu a minha filha. Antes disso, em 90, voltei a beber uns copos e a conviver com pessoas e surgiu a ideia de arranjarmos um atelier. Foi assim que surgiu a Porta 33 nasceu como um projeto para fazer algo no Funchal com outra dimensão e com alguma continuidade, porque isto não avançava….Como eu tinha mais disponibilidade económica e era inquieto, tomei a iniciativa e envolvemo-nos numa aventura que deu origem a Porta 33.

Começou com um grupo de artistas onde estava o Maurício Reis, o Luís Tranquada, o Eduardo Freitas, a Luísa Sousa e outros artistas. Mas tudo começou por mim: comecei a procurar um espaço porque na Madeira, na altura, era muito caro e havia falta de espaços. O espaço ficou disponível e ficámos entusiasmados com o lugar. Inicialmente, a ideia era tornar o projeto lucrativo, mas acabou por ser uma fonte de problemas. A Porta 33 que se conhece atualmente deve-se a Cecília Vieira de Freitas e ao Maurício Reis: foram eles que depois conseguiram avançar com o projeto, eu afastei-me um pouco nessa altura, a minha filha tinha nascido e tive um período em standby.

[a l p h a b e t] EVENT, Galeria dos Prazeres, Madeira, 2012

Recentemente colaboraste com António Barros, apesar de este ter um trabalho mais objetual, diferente do teu a nível do suporte, creio que se complementa bem com o teu trabalho, como é exemplo em  “[a l p h a b e t] EVENT”.

Sim, há uma coincidência cromática, ele usa o preto e o branco como eu. O  What is Watt? surgiu através de um desafio que me lançou Silvestre Pestana para fazer uma exposição na Madeira, uma vez que ninguém aqui agia. Então, com mais algumas pessoas da Madeira, a coisa começou a andar. O primeiro What is Watt? foi em 2001, no Museu da Eletricidade – Casa da Luz (ME-CL). Fiz aí uma sequência a cores em escala, a única que eu fiz.

Recentemente fiz um projeto com o Eduardo Freitas, o Rui Albuquerque e o Manuel Rodrigues, retornando um pouco à Mailart, trata-se de uma caixa de correio onde se mete tudo la dentro.

E agora voltaste a estar ativo com essa ultima exposição 
“[a l p h a b e t] EVENT”, em 2012, com o António Barros. Mas o teu trabalho parece-me continuar a ser uma exploração plástica da distorção/manipulação da imagem…

Sim, está muito ligado a isso. Recentemente, convidaram-me para uma exposição que teve lugar aqui no Funchal, “Ao artista basta sê-lo”, na qual fiz algo que me deu gozo e que já não está relacionado com a distorção da imagem, mas é algo mais conceptual. Este facto também deve-se a uma reação a uma série de coisas e principalmente à minha preguiça. Depois, no ano passado, fiz uma caixinha de fósforos que se chamava “arte chama”, é algo muito dadaísta…

Nos anos 2000 que alterações houve na cena artística no Funchal?

Manteve-se ativa, mas com muitas dificuldades. Houve anos sem nenhum apoio, nenhum. As coisas mudaram; os meios de comunicações mudaram e  muitos amigos meus ficaram em Lisboa e não voltaram. Foi isto tudo que me levou de volta à Porta 33. Agora há novamente muitas pessoas a fazer coisas e eu estou a ver se consigo ser mais sistemático e libertar tempo…