Entrevista à Filipa Venâncio

ARTE

Filipa Venâncio nasceu no Funchal em 1965, onde vive. É licenciada em Artes Plásticas/Pintura pelo Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira, em 1991. Expõe regularmente desde 1987, tendo participado em várias exposições, coletivas e individuais. Das suas exposições individuais mais recentes destacamos: Playground, na Galeria Marca de Água, Funchal, 2019; A Fábrica do Açúcar– Testemunhos de uma Indústria, no Museu de Arte Sacra do Funchal, 2018; Estilo Maison, na Ordem dos Arquitetos – Delegação da Madeira, 2015.

Ao longo do seu desenvolvimento artístico, os temas que atravessam a sua obra têm-se mantido de forma coerente, explorando a ideia de percurso e da memória impregnada nos objetos, evocando a noção fenomenológica do tempo exterior, materializado nas coisas, de Merleau-Ponty. As pessoas foram desaparecendo das suas pinturas, salientando o carácter aleatório desses percursos em casas, ou interior de casas, por vezes em estado de ruína ou deixadas inacabadas. Nesta entrevista, Filipa Venâncio foca em especial a exposição Estilo Maison onde o elemento casa é particularmente explorado através de uma ironia poética que atravessa as suas pinturas impregnadas de estranheza.

Filipa Venâncio, Casa da curva, acrílico s/tela,60x60cm, 2015
Filipa Venâncio, Para alugar, acrílico s/tela, 60x80cm, 2015

A artista e teórica de arte Isabel Santa Clara distinguiu três aspetos principais nos teus trabalhos: a evocação do passado através dos objetos; a questão da narrativa, onde se conta uma história associada ao tempo; e, finalmente, a necessidade de inventariar, que me parece estar relacionada com o facto de as pinturas constituírem séries. Cada exposição é um todo, e parece que a ideia de série remete para o infinito, pois implica uma certa ideia de inesgotabilidade.

Isso de facto é uma constante no meu trabalho que tem permanecido, desde que comecei a trabalhar, de uma forma mais autónoma. Começo a desenvolver um trabalho que pode envolver várias telas, são sempre várias em simultâneo, e a ideia de série está sempre presente. Não é propriamente uma história que é contada, mas há um pendor narrativo em quase todos os trabalhos. Por exemplo, numa exposição que realizei em 1994, havia cerca de 25 telas muito pequenas, todas do mesmo tamanho e de formato quadrado. A exposição chamava-se Habitáculo e era em parceria com outro colega: ele desenvolveu um trabalho de escultura e eu um trabalho de pintura no qual apresentava uma espécie de narrativa circular; começava com uma vista de uma casa onde morei e depois era uma viagem pelo interior da casa, acabando com a imagem dessa mesma casa na jante do carro que eu tinha na altura.

Esse pendor narrativo sempre me interessou e, apesar de às vezes não haver propriamente uma sequência muito lógica, existe uma narrativa.

Podias falar um pouco sobre a tua exposição Estilo Maison, 2015?

Esta decorreu de haver uma recolha de estudos de casas que realizei em vários pontos da ilha. Desde essa exposição, talvez um pouco antes, eu recorri também à pesquisa pelo Google, como forma de me apropriar das casas, explorando a fotografia.

Qual é a tua relação com o espaço da ilha? Porque a natureza assim como as pessoas estão sempre ausentes!

Apesar de viver nesta ilha com esta natureza abundante, não tenho uma relação muito próxima com a natureza! A mim interessam-me sobretudo as construções daí, também, omitir a paisagem às vezes. Mas as pessoas aparecem através dos objetos e até das próprias casas. Esta evocação também se relaciona com a opção de abordar o campo visual do espaço da tela tratando as casas como se elas fossem objetos e explorando a relação entre forma e fundo, digamos que eu as destaco do fundo. Daí a paisagem não me interessar muito, apenas me interessa, às vezes, alguns apontamentos dela. Mas nesses trabalhos o que sucede é que as casas funcionam muito como objetos, a partir da sua relação forma/fundo. Tenho mais uma relação com os lugares do que com a natureza/paisagem. Há lugares que me fascinam e que estão inseridos na natureza. Na pintura procuro sempre essas referências.

Em que medida é que o estado de abandono dessas casas, devido à imigração, reflete, nessas pinturas, a vivência insular?

Houve uma altura em que me interessava pelas casas mais antigas e mais abandonadas, ultimamente não é bem assim; é mais um fascínio pela própria construção. As casas podem não ser propriamente abandonadas, podem ser casas que foram construídas sem nenhum projeto. Interessa-me muito aquelas casas-labirinto que têm muitos anexos, com muita confusão. Estas, eu encontro mais fora do Funchal, em determinadas zonas em que as casas são construídas um pouco à revelia.

A casa também pode ser uma metáfora para o corpo?

Esse é um aspeto que me interessa muito. A minha obsessão pela casa é uma constante. Estou sempre a pensar em casas, a pesquisar casas, a procurar casas e a fotografá-las. Tenho várias ideias para determinadas exposições. Por exemplo, da exposição Estilo Maison, em 2015, surgiram várias ideias para a construção de outros projetos em que a casa aparece, ou até a mesmo a casa representada de várias vistas.

Existe uma ou outra casa aqui nas Ilhas Selvagens que também estava cheia de anexos e na qual a arquitetura foi feita de uma forma estranha e essa estranheza, essa irregularidade, interessa-me.

Ultimamente também te interessas pelo ponto de vista de fora das casas ou do ponto de vista de dentro?

Essa pergunta é muito curiosa porque eu vou oscilando entre a vista de fora e a vista de dentro. Já sucedeu num só projeto representar vistas de fora e de dentro em simultâneo como, por exemplo, na Fábrica do Açúcar, que era um espaço que eu nunca tinha visitado até ter a oportunidade de fazer este trabalho, mas que sempre me fascinou.

Também gostas da gama cromática, da estética que oferecem essas casas, para além do volume?

Sim, o jogo cromático também me fascina imenso. Na pintura interessa-me também o corpo, a aspeto mais matérico – mais texturado ou menos texturado – o qual vou explorando nos meus trabalhos.

Que dinâmicas há no Funchal, com os artistas, no processo criativo? Vão trabalhando sozinhos ou vão criando grupos?

Neste momento estou a trabalhar sozinha e, cada vez mais, eu acho que é isso que vai acontecer, ainda que às vezes desenvolva projetos com outros artistas com os quais me identifico. Já participei em muitas exposições coletivas, mas neste momento não estou interessada, mas noto que ao longo dos anos tenho vindo a desenvolver trabalhos autonomamente.

As tuas pinturas fazem-me lembrar as naturezas mortas de Giorgio Morandi…Quais são as tuas principais referências pictóricas?

Claro que existem muitas influências e referências no meu trabalho mas nas últimas eu noto que a minha paleta está a ficar mais contida. Interessa-me muito explorar os cinzas, algo que no início não fazia parte da minha paleta que era muito vibrante, colorida. Noto que aos poucos a minha paleta está a ficar mais contida em alguns aspetos.

Só trabalhas quando tens uma exposição ou vais fazendo trabalhos?

Às vezes. Por exemplo, as casas da exposição Estilo Maison, eu já andava a trabalhar nelas há quase 2 anos, e depois surgiu essa possibilidade de expor, mas, entretanto, fiz outras exposições e também pintei duas piscinas vazias que tinham a ver com a questão do abandono, dois lugares que existem cá na Madeira onde havia uma espécie de estância balnear, completamente abandonada.

Filipa Venâncio, recanto, acrílico s/tela, 2009

No caso das pinturas que têm como tema os objetos, depois quando as pinturas, por sua vez, são colocadas num interior com objetos, torna-se irónico porque é um pouco antropomórfico…

Essa ironia é intencional. É muito subtil e, por vezes, acho que só eu é que compreendo…

Qual é o teu próximo projeto?

O projeto das Ilhas Selvagens, o qual penso que vai ser um pouco mais lá para a frente. Há uma outra casa que me fascina imenso que eu já fotografei em várias vistas e que gostaria de explorar plasticamente. Já ensaiei algo semelhante numa exposição na Galeria dos Prazeres em que escolhi várias casas daquela zona, aparecendo a mesma casa representada de várias vistas.

Há cerca de dois anos que estou a organizar o meu site, o que me ocupa muito tempo e espero ter concluído rapidamente para poder avançar na pintura. Às vezes eu tenho muita dificuldade em que as pessoas percebam os meus trabalhos, mas com o site eu penso que vai ser mais fácil as pessoas entenderem-me.