Entrevista a Irineu Destourelles
ARTE
Esta entrevista procura refletir sobre a imagem na obra de Irineu Destourelles e o modo como esta pode constituir uma estratégia crítica ao regime de distribuição do poder vigente. A própria indeterminação, as falhas técnicas (Review, 2014), as hesitações dos gestos (Visitor, 2014), surgem aqui como possíveis espaços de partilha de consentimentos. A migração cria uma distância física ao mesmo tempo que permite um olhar crítico. Como podem, neste contexto, a ironia e a arte ser constitutivas de modos alternativos de vivência? Dada a falência das narrativas, poderá a imagem constituir um fator fomentador da identidade?
Irineu Destourelles nasceu em Cabo Verde e cresceu em Lisboa a partir dos 4 anos, estudou na Willem de Kooning Akademie, em Roterdão e na Central St. Martins College of Art and Design, em Londres, onde atualmente reside. Tem participado em exposições e exibido os seus vídeos, entre outras, na Casa África, em Las Palmas, na Fondazione Giorgio Cini, em Veneza, Hangar Bicocca, em Milão, no festival Transmediale, em Berlim. Entre 2002 e 2009 trabalhou no Museu Nacional Marítimo, em Londres, uma instituição com uma larga coleção de material colonial e que na altura manteve um programa de artes contemporâneas. Posteriormente, foi diretor e professor no M_EIA, a primeira instituição de ensino superior em Cabo Verde, dedicada ao ensino das artes e design. Em 2014, adotou o apelido Destourelles, proveniente de uma personagem crioula da ilha de Martinica, que teve uma relação paradoxal com narrativas coloniais, e que é simbólico do modo de relações ambíguas que o crioulo cabo-verdiano desenvolveu com o colonialismo português, centrais na seu obraartística. A sua obra recorre a diversos media, desde o vídeo à pintura, refletindo sobre as questões da identidade e da linguagem e do seu imbricamento nas narrativas pós-coloniais. Alguns dos seus trabalhos, como, por exemplo, New Words for Mindelo’s Urban Creole, 2014, refletem sobre o processo de formação de identidade no contexto do tecido urbano de Mindelo, Cabo Verde, e sobre o modo como o entrelaçamento de ícones de África e do Ocidente configuram a cidadania em Cabo Verde.
No contexto ibérico, Cabo Verde, arquipélago desabitado, foi colonizado por donatários e colonos portugueses a partir de 1462, e, desde cedo, sustentado por mão-de-obra escrava, oriunda da costa africana. No séc. XVI, tornou-se um importante entreposto do comércio negreiro para a América Central e Brasil. Para além da sanção da missão evangelizadora, esta situação era agravada, nas ilhas atlânticas, pela distância da metrópole e pelo isolamento das ilhas que tornavam impunes os maiores atos de abuso e de crueldade. A violência do comércio do corpo negro pelo homem branco, da imigração forçada e do consequente desenraizamento, constituiu, assim, de certa forma, para as ilhas atlânticas colonizadas, um trauma original. A entrevista com Destourelles oferece um ponto de reflexão sobre as ambiguidades da dialética entre o eu e o outro, o dentro e o fora, o colonizador e o colonizado e sobre a sua atividade artística através de um olhar oscilante que a diáspora lhe proporciona. Neste contexto, Destourelles comenta o modo como os processos de domínio, assentes nos estereótipos dicotómicos, tendem a perpetuar-se assumindo novos matizes e o modo como estes são interrogados através do seu trabalho artístico.
Uma constante que atravessa o seu trabalho é a reflexão sobre o poder da linguagem e a linguagem do poder, e sobre o seu papel na perpetuação dessas narrativas como, por exemplo, em Review (2014), New words for Mindelo’s Urban Creole (2014), ou 25 Profiles (2015), abordados também nesta entrevista. Mas, em lugar de se colocar numa posição de crítica unilateral, Destourelles opta pelos interstícios dessas dicotomias para tornar visíveis, através do seu trabalho artístico, os gestos, as fissuras que permitem levantar o véu sobre a riqueza que existe no não dito, no manancial pré-reflexivo. Aí, emergem as diferenças subtis através das quais as narrativas se reinventam (embora herdando estruturas clássicas), como nos gestos das mãos hesitantes das personagens e nas pausas hesitantes da narradora, em Visitor, por exemplo, que, isoladas como fragmento, nos sublinham o corpo. A sua língua é o crioulo, o qual, enquanto língua matriz, se encontra mais perto do orgânico e do gesto vital.
Na sua origem, o crioulo emergiu do hibridismo cultural e do desejo de criar pontes entre o colonizador e as populações colonizadas e entre estas, dado que provinham, frequentemente, de origens por vezes muito diversas. Sedimenta uma hierarquia social, baseada em dicotomias puro/impuro, estrangeiro (dominador) /da terra, na qual o branco dominava, constituindo-se em objeto de desejo e fascínio. No entanto, o crioulo assumiu nuances diferentes no contexto insular atlântico. O crioulo cabo-verdiano tem em comum com o crioulo hispânico das Caraíbas o facto de assentarem em categorias étnicas e sociais que estruturam a sociedade e o pensamento, mas diferem pelo facto do crioulo nas Caraíbas surgir de uma economia de plantação, enquanto em Cabo Verde esteve desde logo ligada à formação do território. Por sua vez, no contexto atlântico hispano, por exemplo, o crioulo é associado ao branco nascido nas Índias e a uma classe privilegiada que assumiu o discurso da crioulização como forma de se legitimar. Destourelles aborda aqui, assim, a especificidade de um fenómeno comum às ilhas atlânticas, partilhando com estas uma história marcada pela colonização, pela mão-de-obra escrava, pelo crioulo, a miscigenação, a diáspora e a diversidade das suas reinvenções.