Entrevista a Maria José Cavaco

ARTE

Maria José Cavaco é uma artista açoriana que está representada em coleções públicas e privadas, incluindo a coleção da Fundação PLMJ, da Fundação Carmona e Costa, em Lisboa; e nos Açores, a coleção do Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, Ribeira Grande, e do Museu Carlos Machado, Ponta Delgada. A coerência conceptual do seu processo criativo articula-se com uma clareza depurada tendendo para a desmaterialização da obra a qual se manifesta, por vezes, no seu caráter projetual ou na meta-reflexão sobre a pintura, como em Dear Painter, 2011.

Operando frequentemente através de séries, as suas obras remetem, por vezes, para a (im)possibilidade da exaustão até ao infinito de um tema. O corpo, a casa e o horizonte estão presentes em muitas das suas obras – como, por exemplo em As minhas casas voadoras, 2002 ou Rotas de todos os dias, 2011 – enquanto eixos da passagem do tempo, âncoras da memória e da tensão constante entre a subjetividade e a objetividade, o interior e o exterior. Os seus trabalhos apresentam-se frequentemente como uma instalação cenográfica no espaço, desempenhando um jogo performativo com o visitante, como em Repouso, 2007.

Nesta entrevista, Maria José Cavaco partilha as suas reflexões sobre o seu trabalho Rotas de todos os dias, 2010, apresentado na exposição itinerante Horizontes insulares,e Dear Painter, 2011.

Em Rotas de todos os dias que apresentou na exposição “Horizontes Insulares”, em 2011, criou um horizonte formado pelo que, numa conversa, denominaste de “cartografia de intersecções”. Trata-se de uma série de desenhos a marcador sobre papel, previamente sensibilizado pela impressora – o que lhe dá diferentes tonalidades de página para página -, e preparados a óleo o que confere transparência ao papel. Os temas de todos os desenhos são o seu próprio corpo, mas na frente e no verso, os desenhos sendo diferentes, apresentam interceções visíveisatravés da transparência do papel.

As linhas dos dois lados do papel intersetam momentos diferentes no tempo e unem momentos de introspeção, criando um espaço que remete para outra dimensão. De que modo a memória, a representação do corpo e o espaço insular se entrelaçam neste subtexto, no vaivém dos dias?

Eu poderia dar uma resposta simples a essa pergunta, e essa resposta seria: eu nasci cá na ilha, uma parte significativa de várias gerações da minha família é de cá e está ligada à própria história da ilha, cresci em Lisboa e regressei já depois de adulta, na qualidade de alguém que vem de fora. A reconstrução da ilha como história e memória é uma parte importante duma construção da minha auto-representação, e também naturalmente da minha identidade.

Mas posso também dar uma resposta um pouco mais desenvolvida, que se enfoca mais nesta ideia de “espaço insular”. Rotas de todos os diasé um projecto de surgiu mediante uma proposta muito concreta, com um tema pré-definido. O Orlando (Britto Jinorio) convidou-me para ser a representante do arquipélago dos Açores na exposição colectiva que estava a organizar com o Centro de Arte La Regenta, em Las Palmas – e que seria uma exposição itinerante por várias regiões insulares, com que as Canárias teriam tido algum tipo de vínculo histórico, social, cultural, geográfico –, e a forma como ele apresentou o projecto – um projecto transdisciplinar, que não passava apenas pelas artes plásticas, mas também pela literatura – trazia já definido quer o título, quer o fio condutor da exposição. Trazia portanto já definido o fio condutor das obras que a integrariam. A ideia era que os 12 artistas convidados concebessem um projecto novo que de algum modo manifestasse o modo como viam, a partir de uma região insular, não só a sua própria vivência na ilha, mas também a relação dessa vivência com o mundo e a cultura em geral. Daí o título do projecto: horizontes insulares.

No meu caso, eu agarrei justamente esta ideia de horizonte, não só num sentido literal mas também metafórico. Há uma coisa um pouco estranha, para quem vive numa ilha, que é o modo como muitas vezes as pessoas que nunca tiveram uma vivência insular pensam o isolamento da ilha. Nos contactos que tenho tido ao longo da vida, tenho notado que a primeira reacção é pensar na ilha como um espaço claustrofóbico: um pedaço pequeno de terra, rodeado de mar. E a ilha é isso mesmo. Só que a percepção que se tem do território insular quando se tem uma vivência dele, não é, do meu ponto de vista, esta. Porque o território insular nunca é apenas terra para quem cá vive. O mar, e a presença do horizonte, num sentido literal, faz parte do território insular. E neste sentido, numa ilha, o horizonte é vastíssimo, conforme as pessoas que vivem em ilhas podem experienciar. Portanto o que é estranho nisto da vivência insular é que um espaço que aparentemente, quando se pensa nele de fora, é claustrofóbico, acaba por ser, quando se o vive de dentro, extremamente vasto. Mas para termos esta percepção, temos de ver o horizonte, e a altura do horizonte depende, é claro, da cota a que nos situamos. Esta ideia de que este território vasto está em vínculo estreito com a nossa própria localização foi o que lançou o projecto Rotas de todos os dias, e a primeira decisão formal – o projecto como uma linha de horizonte, uma linha horizontal que passa à altura (em média) do olhar do observador – funda-se justamente nessa ideia.

Mas há também um sentido metafórico para o horizonte: Derrida, por exemplo, concebe-o como uma espécie de “unidade antecipada” em qualquer incompletude. Alguma coisa que mantém a possibilidade de referência a algum tipo de unidade, mas que recua sempre, sendo também atravessada por uma referência à incompletude. Curiosamente, eu acho que é deste modo que o ilhéu se relaciona com o horizonte. O sentido de unidade será, digamos, a possibilidade de localização que o horizonte nos fornece, mas essa mesma referência é também a lembrança constante da provisoriedade dessa possibilidade.As 50 folhas, que na verdade contêm 100 desenhos, uma vez que são desenhadas na frente e verso, são uma espécie de cartografias do próprio corpo. Mas o corpo como uma confluência de intersecções, que se prolongam sempre: o corpo portanto como resultado de umexercício constante de relocalização. Não gostaria de explicar muito ou estabelecer muitas relações com outras referências, porque elas às vezes limitam a amplitude de conexões a que as obras possam dar origem, vistas por outros olhos. Mas há uma referência interessante de Foucault sobre o espelho como uma heterotopia, na medida em que fornece um ponto virtual que nos permite percepcionar o espaço em que nos encontramos como real. Os desenhos que integram as Rotas de todos os diasnão são realizados com recurso a um espelho, são realizados por observação directa, portanto não recorrem a um ponto virtual, no exterior, para a sua elaboração, que possibilite uma perspectivação coerente e real daquilo que é observado. Este exercício de auto-observação é naturalmente também metaforicamente introspectivo. E é também um desdobramento de possibilidades de reposicionamento. É provavelmente nas cartografias desenhadas no espaço ‘entre’ – pelas intersecções das linhas de ambas as páginas de cada folha – que se gera, de facto, uma dimensão não já exclusivamente real, que faz justiça à amplitude do horizonte insular.

Fig. 1 - Maria José Cavaco, Horizontes Insulares, 2011
Fig. 2 - Maria José Cavaco, Horizontes Insulares, 2011

Dear Painter, constituído por três núcleos, Are we a pair, Não sei onde estou (por favor fica comigo) e Planta para um espaço-cobertura. Esc. 1 : 30 articula uma autoreflexividade da pintura – como referiste no texto do mesmo nome – sobre a tensão, a premeditação e a conceptualização. Poder-se-á considerar que o primeiro trata, respetivamente, de tensão, o segundo, de premeditação e o terceiro do conceito.

De que modo é que a conceptualização de um tempo não cronológico, em que o passado coexiste com o presente, sobrevivendo nas formas expressivas de um pensamento imagético através de uma montagem sincrónica (como prefigurou Aby Warburg, no seu inacabado Atlas) se articula nesta obra e, em particular, em Planta para um espaço-cobertura. Esc. 1 : 30?

Are we a pairé uma série de dípticos em que, na verdade, o segundo elemento é a parede em que as pinturas são montadas. Portanto, a parede do espaço integra a obra. O espaço é o espaço em que o observador se movimenta. A pergunta ou a exclamação “are we a pair” dirige-se a esta relação, através do espaço, com o observador e, por decorrência, com aquilo que ele projecta nesta espécie de avatares que são as figuras representadas. É neste sentido que a sua configuração é eternamente mutável (daí os múltiplos com recurso a uma técnica que lhes confere estatuto de originais). Não sei onde estou…é, por outro lado, um díptico em que uma parte se apresenta como reflexo da outra, não se sabendo qual o reflectido e qual o reflexo. É o posicionamento do observador entre as duas peças que pode determinar não só uma orientação na paisagem representada – uma estrada a percorrer ou uma estrada percorrida – mas também qual das peças se apresenta provisoriamente como reflexo. A dualidade que atravessa a exposição é em rigor a dualidade que determina que qualquer objecto exibido seja uma mediação entre as circunstâncias em que é concebido e as circunstâncias em que é observado. Qualquer sentido que possa ser construído para os objectos resulta deste compromisso e escapa a quem o produz objectivamente. É também neste compromisso que as memórias activadas com a observação dos objectos determinam que este encontro seja um de confluência de diversos tempos: encontram-se na duração, a que apenas a espacialização do tempo confere uma dimensão cronológica. As ideias de verticalidade e de horizontalidade – outro par que traduz, ainda, a construção dual da exposição –, que atravessam formalmente toda a exposição, constituem também princípios estruturantes fundamentais que, atravessando a nossa cultura, se relacionam com a nossa própria vida e morte, e com as imagens que as representam e/ou que as ritualizam.

Planta para um espaço…surgiu perfeitamente contextualizada. É um projecto, grosso modo, de ilustração. Foi um convite para a participação numa exposição comemorativa do IV Centenário do Nascimento do Padre António Vieira, organizada pela Universidade dos Açores (em colaboração com a Câmara Municipal de Ponta Delgada e com o Centro Cultural da Caloura). Foram seleccionadas passagens do sermão de Santa Teresa – pregado pelo Padre António Vieira na Igreja do Colégio de Ponta Delgada em 1654 –, que foram atribuídas aleatoriamente a cada um dos artistas convidados, no sentido de serem interpretadas plasticamente. As dimensões eram regulamentadas. O texto que me calhou intitulava-se, se bem me lembro, “ A Porta do Céu”. Basicamente é uma planta: uma representação de um espaço visto na perpendicular, do infinito (do céu, se quisermos). E é também uma espécie de mesa sacrificial. Fez sentido integrá-la nesta exposição porque o princípio dual que atravessa as restantes peças é ainda estruturante nesta peça. Do meu ponto de vista, o rectângulo em que é representada a paisagem é atravessado por um certo patos– no sentido original da palavra, como ‘sofrimento’ –, que obviamente se infiltra no baixo-relevo assírio que foi o referente da imagem representada no rectângulo menor. Este patosconecta diferentes tempos.   

Quando vemos estes três núcleos de trabalho no espaço, eu acredito que cada um age sobre os outros determinando um certo sentido para a sua observação, mas o centro destes três núcleos é o observador… enfim, é ele que pode fazer reflectir umas peças nas outras, entrevendo as conexões que permitem eventualmente chegar a estas ideias de vida e de morte.

Fig. 3 - Maria José Cavaco, Are we a pair (Oxide Black), Dear Painter, 2010, oil on canvas, 329 x 180 cm (occupied area)
Fig. 4 – Maria José Cavaco, Não sei onde estou (por favor fica comigo), Dear Painter, ( 216 x 195 cm) - Diptico, 2011