Eu poderia dar uma resposta simples a essa pergunta, e essa resposta seria: eu nasci cá na ilha, uma parte significativa de várias gerações da minha família é de cá e está ligada à própria história da ilha, cresci em Lisboa e regressei já depois de adulta, na qualidade de alguém que vem de fora. A reconstrução da ilha como história e memória é uma parte importante duma construção da minha auto-representação, e também naturalmente da minha identidade.
Mas posso também dar uma resposta um pouco mais desenvolvida, que se enfoca mais nesta ideia de “espaço insular”. Rotas de todos os diasé um projecto de surgiu mediante uma proposta muito concreta, com um tema pré-definido. O Orlando (Britto Jinorio) convidou-me para ser a representante do arquipélago dos Açores na exposição colectiva que estava a organizar com o Centro de Arte La Regenta, em Las Palmas – e que seria uma exposição itinerante por várias regiões insulares, com que as Canárias teriam tido algum tipo de vínculo histórico, social, cultural, geográfico –, e a forma como ele apresentou o projecto – um projecto transdisciplinar, que não passava apenas pelas artes plásticas, mas também pela literatura – trazia já definido quer o título, quer o fio condutor da exposição. Trazia portanto já definido o fio condutor das obras que a integrariam. A ideia era que os 12 artistas convidados concebessem um projecto novo que de algum modo manifestasse o modo como viam, a partir de uma região insular, não só a sua própria vivência na ilha, mas também a relação dessa vivência com o mundo e a cultura em geral. Daí o título do projecto: horizontes insulares.
No meu caso, eu agarrei justamente esta ideia de horizonte, não só num sentido literal mas também metafórico. Há uma coisa um pouco estranha, para quem vive numa ilha, que é o modo como muitas vezes as pessoas que nunca tiveram uma vivência insular pensam o isolamento da ilha. Nos contactos que tenho tido ao longo da vida, tenho notado que a primeira reacção é pensar na ilha como um espaço claustrofóbico: um pedaço pequeno de terra, rodeado de mar. E a ilha é isso mesmo. Só que a percepção que se tem do território insular quando se tem uma vivência dele, não é, do meu ponto de vista, esta. Porque o território insular nunca é apenas terra para quem cá vive. O mar, e a presença do horizonte, num sentido literal, faz parte do território insular. E neste sentido, numa ilha, o horizonte é vastíssimo, conforme as pessoas que vivem em ilhas podem experienciar. Portanto o que é estranho nisto da vivência insular é que um espaço que aparentemente, quando se pensa nele de fora, é claustrofóbico, acaba por ser, quando se o vive de dentro, extremamente vasto. Mas para termos esta percepção, temos de ver o horizonte, e a altura do horizonte depende, é claro, da cota a que nos situamos. Esta ideia de que este território vasto está em vínculo estreito com a nossa própria localização foi o que lançou o projecto Rotas de todos os dias, e a primeira decisão formal – o projecto como uma linha de horizonte, uma linha horizontal que passa à altura (em média) do olhar do observador – funda-se justamente nessa ideia.
Mas há também um sentido metafórico para o horizonte: Derrida, por exemplo, concebe-o como uma espécie de “unidade antecipada” em qualquer incompletude. Alguma coisa que mantém a possibilidade de referência a algum tipo de unidade, mas que recua sempre, sendo também atravessada por uma referência à incompletude. Curiosamente, eu acho que é deste modo que o ilhéu se relaciona com o horizonte. O sentido de unidade será, digamos, a possibilidade de localização que o horizonte nos fornece, mas essa mesma referência é também a lembrança constante da provisoriedade dessa possibilidade.As 50 folhas, que na verdade contêm 100 desenhos, uma vez que são desenhadas na frente e verso, são uma espécie de cartografias do próprio corpo. Mas o corpo como uma confluência de intersecções, que se prolongam sempre: o corpo portanto como resultado de umexercício constante de relocalização. Não gostaria de explicar muito ou estabelecer muitas relações com outras referências, porque elas às vezes limitam a amplitude de conexões a que as obras possam dar origem, vistas por outros olhos. Mas há uma referência interessante de Foucault sobre o espelho como uma heterotopia, na medida em que fornece um ponto virtual que nos permite percepcionar o espaço em que nos encontramos como real. Os desenhos que integram as Rotas de todos os diasnão são realizados com recurso a um espelho, são realizados por observação directa, portanto não recorrem a um ponto virtual, no exterior, para a sua elaboração, que possibilite uma perspectivação coerente e real daquilo que é observado. Este exercício de auto-observação é naturalmente também metaforicamente introspectivo. E é também um desdobramento de possibilidades de reposicionamento. É provavelmente nas cartografias desenhadas no espaço ‘entre’ – pelas intersecções das linhas de ambas as páginas de cada folha – que se gera, de facto, uma dimensão não já exclusivamente real, que faz justiça à amplitude do horizonte insular.