Entrevista a Lurdes Lindo

ARTESANATO

A tecelagem é uma das mais antigas indústrias dos Açores, tendo florescido, em grande parte, para suprir as necessidades de subsistência do arquipélago, devido ao seu isolamento. As suas principais influências foram da região da Flandres, de onde vinham os tecidos no séc. XVI. As mantas de retalhos surgiram na Ilha de St.ª Maria e, a partir do séc. XVI, começaram a ser produzidas em S. Jorge as célebres colchas em ponto alto, com as cores garridas típicas do folclore açoriano.

Tendo aprendido a bordar desde a infância, Lurdes Lindo, de 62 anos e natural de S. Miguel, aprendeu mais tarde a costurar, a fazer malha, a tecer e a confecionar roupa. Depois de ter tido várias formações de tecelagem, atualmente, dedica-se à tecelagem, dando também formação, inclusivamente a homens. Em 1999, abriu o loja/museu da tecelagem “O linho”, onde realiza vários trabalhos de tecelagem recorrendo às técnicas tradicionais açorianas – mantas de retalhos, tapetes e afins – e outros mais atuais, como  malas, vestuário ou bijuteria e bordado.

Nesta entrevista, a tecelã conta como iniciou a atividade, refletindo sobre o seu papel na condição da mulher nos Açores e sobre a situação atual desta atividade no contexto da globalização.

Como tomou contacto com esse ofício e como se formou? Foi através da família ou da escola?

Sempre tive gosto em aprender, comecei a bordar desde muito nova, aprendi a fazer crochet e depois fui aprender a fazer malha. Houve uma altura em que iam dar um curso de tecelagem aqui na Maia, inscrevi-me mas não tive lugar. Infelizmente como iam receber uma bolsa, os lugares já estavam todos destinados a outras pessoas. Passados cerca de dois anos, resolveram dar outro curso mas como nesse não recebiam bolsas já ninguém quis ir. Então eu própria andei a angariar mais pessoas para que o curso pudesse ser dado e assim foi.

É a própria que inventa os desenhos das peças?

Muitos dos desenhos aprendi nas formações, outros são de livros específicos que existem na tecelagem e muitos até que invento, basta por vezes mudar um simples pedal ou o enfiar das linhas no tear e depois temos desenhos diferentes. A imaginação também ajuda muito.

Faz primeiro um desenho ou experimenta diretamente no material?

Depois de colocar as linhas todas no tear, enfiar nos quadros e no pente, começo a testar o trabalho diretamente no material. Isto é um processo longo por isso muitas vezes não temos tempo para andar a fazer muitos testes antes. Quando não se gosta do resultado, assim enfia-se novamente as linhas mudando o padrão.

Qual a origem das técnicas? Estão originalmente ligadas às mulheres?

Desde muito nova me lembro que as tecedeiras cá da ilha eram todas mulheres, por isso acho que se pode dizer que estava originalmente ligada às mulheres. Hoje em dia o cenário mudou e também temos grandes tecelões pelo mundo fora, aqui em casa tenho o meu marido que me ajuda bastante fazendo a parte das mantas e tapetes de retalhos e, muitas vezes, também faz o tecido em fio de linho.

Faz alguma alteração relativamente às técnicas tradicionais?

Faço trabalhos com as técnicas tradicionais, mas existem coisas em que aprendi por conta própria a fazer de outra forma porque poupava tempo. Antigamente as pessoas por exemplo tinham uma forma diferente de colocar a teia no tear que demorava muito tempo. Fui tentando até que consegui fazer de forma mais rápida, por exemplo tinham apenas uma ou duas bobines de fio de algodão para fazer a teia, tinham de fazer vários novelos para depois fazerem a teia. Optei por usar 12 bobines, assim poupo tempo. Antigamente enrolavam-se os retalhos em bobines feitas de cana que depois eram colocadas em pequenas “barquinhas”, mas depois, comecei a usar lançadeiras mais modernas que levam mais retalhos ou linhas. O meu primeiro tear foi o mais tradicional e que ainda tenho, mas depois, no segundo coloquei umas inovações…o tradicional é bom mas podemos sempre aproveitar a inovação para ajudar a facilitar e a poupar tempo. O trabalho de tecer leva muito tempo e temos de fazer o que está ao nosso alcance para tornar esse tempo mais rápido.

Fig. 1 – Tecelagem realizada no atelier “Tecelagem O Linho”

Considera o artesanato como apenas a transmissão de um saber artesanal ou também a sua inovação?

O artesanato pode ser a transmissão de um saber artesanal conjugado com a inovação, a época de fazer apenas tapetes, mantas e colchas no tear já é do passado. Agora podemos fazer tudo aquilo que a nossa imaginação desenhar.

Que dificuldades encontrou até obter autonomia financeira com essa atividade?

 Até hoje nunca tive autonomia financeira com esta atividade, pode dizer-se que isto é um complemento para ajudar financeiramente, mas autonomia e dizer que posso viver apenas do artesanato é impossível.

Qual o papel da internet nessa atividade, como ela é feita atualmente, o que mudou?

Hoje em dia pesquiso na internet e de lá consigo tirar inúmeras ideias com os trabalhos que vejo, assim como também posso mostrar a minha arte a outras pessoas. Considero a internet um meio de comunicação e de partilha de ideias muito bom.

Que influência teve a globalização e o turismo?

Para mim posso dizer que o turismo ajudou um pouco a aumentar as vendas e também para produzir os produtos que noto que são mais apetecíveis aos turistas. Aqui faço trabalhos personalizados e quase sempre diferentes uns dos outros, tento sempre não fazer o mesmo trabalho muitas vezes a não ser que me peçam porque assim a maior parte das pessoas pode dizer que têm um trabalho único. Hoje em dia as pessoas viajam mais e querem na maior parte das vezes levar uma recordação que sabem que não será encontrada noutro lugar.

De que forma é que essa atividade contribui para o seu bem-estar?

Costumo dizer que a tecelagem é uma boa forma de combater o stress, nos dias em que estou stressada venho ao tear “dar umas pancadas” e isso alivia, sinto-me bem quando estou a tecer. Faz agora um ano parti uma perna estive parada um tempos, depois nem precisei de ir para a fisioterapia porque o médico disse-me que o tear era excelente para isso. Tecer faz bem ao corpo e à alma ver um trabalho ganhar forma não tem coisa melhor.

Considera que atividades artesanais tradicionais, como a tecelagem, desempenham um papel na autonomia e autoconfiança das mulheres nos Açores? De que modo é que esse papel tem vindo o mudar?

Sim, hoje em dia tanto a tecelagem como outras artes desempenham um papel importante na auto-estima das mulheres, quando me criei os tempos eram outros. Mas hoje em dia as mulheres são independentes, têm o seu emprego e conciliam a vida familiar com a profissional, as artes tal como a tecelagem artesanal são um complemento.

Cria alguma comunidade com as mulheres que desempenham semelhante ofício?

Aqui somos todos amigos, conheço pessoas que fazem o mesmo do que eu e algumas até fui eu que ensinei. Esta arte cada vez tem mais adeptos, a maior parte tira um workshop e depois nunca mais trabalha, mas isso é normal. A maior parte dos materiais e ferramentas são dispendiosas e só mesmo quem tem gosto pode lançar-se nesta vida, pertenço a uma associação de artesões e interagimos entre nós.

Como sente que encaram socialmente a sua atividade? Sente que é dignificada?

Sinto-me dignificada por uns e desvalorizada por outros, mas a vida é assim, tem pessoas que pensam que isto é uma brincadeira, nem sabem o trabalho que dá, pensar numa peça e colocar no tear. Mas o maior problema por vezes tem a ver com o preço, um trabalho manual tem o seu custo mas tem pessoas que não pensam nisso e preferem ir aos chineses buscar coisas porque lhes sai mais barato. Mas grande parte gosta do que faço e dá o devido valor.

Parece-lhe que o modo como a sociedade considera esta atividade tem mudado mais recentemente? Porquê?

Temos aqueles que gostam e dão valor e compreendem o quanto custa o trabalho e depois temos aqueles que são o oposto. Antigamente, todas as moças faziam o seu dote e havia muitas tecedeiras, hoje em dia temos de inovar muito para captar a atenção da sociedade. Por aqui a maior parte dos meus trabalhos são para turistas ou para aqueles que ainda apreciam o trabalho manual.