Entrevista a Rui Melo

ARTE

Rui Melo é um artista açoriano, residente na Ilha Terceira. Tem realizado regularmente exposições em Portugal e no estrangeiro. A vivência numa ilha vulcânica fê-lo ter uma consciência aguda do precário equilíbrio da existência humana face às forças da natureza. Esta precariedade reflete-se na sua obra pela importância dada à aleatoriedade do acaso como processo imanente da Natureza, pelo lado telúrico das manchas que se liquefazem, expandem e explodem, salpicando de azul – a cor predominante das suas pinturas por vezes pontuadas a vermelho – o suporte.

A utilização do viroccomo suporte e a exploração das nuances que este permite, deixando por vezes à vista as suas irregularidades, cria uma textura acentuadamente matérica, convocando uma perceção sinestésica que caracteriza a sua pintura.

Nesta entrevista, Rui Melo fala-nos do seu processo criativo, do modo como a sua vivência se reflete neste, focando, em particular, a série de pinturas Paisagens Transversais, 2017 e a sua relação com a tradição pictórica da paisagem.

Como é o seu processo criativo, desenha primeiro, inspira-se em texturas, ou parte da experimentação dos materiais?

Na verdade, o processo parte, quase sempre de uma experimentação dos materiais. No entanto, há uma ideia básica como ponto de partida. Mas é sobretudo a forma como os materiais reagem entre si que, muitas vezes, orientam a condução do processo. É importante saber agir no momento certo deixando, contudo, que o importante dessa reação se mantenha inalterado.

Gosta de incorporar nas pinturas o acaso e a imprevisibilidade dos materiais…

Sim. A questão do acaso em si é algo com o qual eu trabalho. Encaro o acaso e a imprevisibilidade como “instrumentos”. Aliás, o resultado final, é um pouco a imagem disso. Quem os observa percebe que há vários elementos em confronto, não sendo determinado, à partida, o fim daquela estória. É claro que depois há técnicas que se vão desenvolvendo para otimização de resultados, mas essa imprevisibilidade e a questão do acaso são, efetivamente, fatores determinantes.

Desde 2009 que utiliza o viroc como suporte, este permite uma textura mais matérica da pintura que convoca uma perceção quase sinestésica. É intencional?

Desde 2009 a utilização do viroc (designação comercial de painel compósito de madeira e cimento) partiu de uma empatia imediata e com a sua textura. A minha relação com o material foi muito visual, digamos assim, e achei que se integrava bem nas coisas que eu estava a fazer. As patines e suas diferentes nuances interessaram-me. Todo o trabalho sobre viroc foi feito no sentido de deixar muito do material no seu estado puro, porque ele próprio tem uma irregularidade que pretendi que fizesse parte da composição, através da conjugação das suas próprias manchas com a composição criada. O desafio foi, muitas vezes, deixar zonas do suporte imaculadas.

Em Toiro I e II utilizou essa técnica de ocultação e desocultação do suporte, certo?

Esses são dois trabalhos fotográficos que foram feitos para uma exposição sobre tauromaquia e, de facto, quando olhamos para eles, têm muito em comum com o meu trabalho de pintura. Simplesmente, o material que se utilizou e a tecnologia foram diferentes. O conceito subjacente, no fundo, seria expressar através daquele crânio de um touro, o que resta das touradas, depois da festa e da satisfação humana.

Toda a plasticidade está relacionada com o meu processo de pintura. Especificamente, há uma fotografia que foi feita sobre um fundo branco, tratado digitalmente, para que se destacasse o carácter pictórico daquelas ossadas.

fig. 1 - Rui Melo, Toiro I, 2006, 60 x 60, fotografia. Coleção particular.
fig. 2 - Rui Melo, Toiro II, 2006, 60 x 60, fotografia. Coleção particular.

A tensão entre os materiais nas suas pinturas, sustentada por um precário equilíbrio, de que falou Carlos Bessa, é algo que procura? Como sabe que atingiu esse equilíbrio, isto é, qual o momento em que considera que a pintura está acabada?

Como referi, o meu processo criativo pode ser particularmente caótico o que faz com que, saber quando parar, seja a questão mais crucial. Neste tipo de trabalho, nunca há certezas absolutas; é aí que são mais necessários o sentido e sensibilidade artísticos. Quando sentimos atingido o ponto-limite para além do qual não se pode acrescentar nada, tentamos fixá-lo. Esse é o grande enigma a resolver: o momento certo para parar. Esse saber acontece quando se sente empatia com a composição. A questão do equilíbrio precário, essa tensão que se cria nas obras de que fala Carlos Bessa, é muito importante no meu tipo de trabalho. A obra em si é um objeto de comunicação, deve apelar ao espetador: essa tensão, se bem trabalhada do ponto de vista compositivo, vai despertar um apelo. De facto, entendo esse factor, como um elemento constituinte da composição.

Como lhe surgiu a ideia das paisagens transversais?

A questão das paisagens transversais tem muito a ver com a questão da pergunta anterior. É aqui, talvez, que se manifesta o meu lado de ilhéu, mas que podia ser daqui ou de qualquer outra parte da Terra.

Quando se vive num sítio com estas características, com a sua força telúrica, temos uma noção muito clara da nossa fragilidade e pequenez. Tem-se o oceano pela frente, por cima um céu volátil e o fogo debaixo dos pés. Não é fácil ser indiferente nem difícil encarar a Natureza com humildade.

Portanto, estamos muito próximo desses elementos, aparentemente, opostos entre si. Esse equilíbrio precário acaba, de certo modo, por refletir-se nos meus trabalhos. A questão da paisagem transversal prende-se com essa vivência. Intitulei-as “Paisagens transversais”numa inversão irónica… como se em lugar do conceito clássico de paisagem e de horizontalidade que lhe está subjacente, realizássemos um corte vertical. Ao fazê-lo, o que encontraríamos debaixo de nós seria decerto tão fascinante como o que vemos na secção horizontal. As paisagens transversais estão relacionadas com o aquilo que não vemos, mas sobre o qual andamos e do qual, muitas vezes, nem nos apercebemos, apesar de ser tão poderoso e que pode mudar de um segundo para o outro, mostrando como a nossa passagem na terra é simplesmente um instante de sorte (ou não)… No fundo é algo telúrico, algo sobre a terra. Não é sobre estas ilhas especificamente, mas sobre a Terra e sobre a fragilidade humana.

Fig. 3 – Rui Melo, Paisagem Transversal V, 75x122 cm acrílico e tinta da china sobre tela 2016 col. particular

Enquanto género, a paisagem nasceu com a ideia da racionalidade cartesiana e do homem como ativo, um olhar fixo e racional sobre uma natureza disponível, associada à mulher: nas tuas pinturas, pelo contrário, são os materiais que “falam” e o Rui Melo tenta ser um bom condutor…

Basicamente, a minha perspetiva sobre a noção da paisagem não é convencional. Chamo-lhes “paisagens”, mas podia chamar-lhes outra coisa… não encontrei nenhum termo que definisse melhor o que faço. Mas parece-me que a sua interpretação é pertinente, e entendo que, de certa forma, essa associação filosófica à mulher, também neste caso, não será descabida.

Quais as vantagens e mais-valias, para a sua atividade, de viver numa ilha?

Para além das dimensões conceptuais acima referidas e de uma qualidade de vida diferente dos meios urbanos, numa perspetiva prática, enquanto artista plástico que precisa expor e dar a conhecer o seu trabalho, não existem mais-valias. Apesar de tudo, enquanto nativo, a opção pela ilha não foi difícil. Viver fora dela não seria fácil. Acredito, que esta vivência me dá uma visão muito particular do mundo, que procuro refletir em determinados trabalhos, sem que estes se transformem, como já referi, numa perspetiva regionalista que considero desinteressante. Tento fixar essa substância decorrente dessa vivência incomum. Existem também algumas condicionantes logísticas que têm de ser contornadas, mas que não são inultrapassáveis. Podem sim ser dispendiosas, nomeadamente, no que se refere ao transporte das obras.

Que outras coisas o inspiram para além da natureza, decerto aí impressionante? É inspirado por outros artistas ou leituras que faz?

Sim, há vários artistas que marcaram a minha maneira de trabalhar. Num salto histórico algo desconcertante, poderia dizer desde Bosch e Caravaggio, passando por muitos outros incontornáveis, até, por exemplo, a Helena Almeida. Embora possa não transparecer, são universos que me seduzem de maneira diferente. Tive a sorte de ver os trabalhos de alguns destes artistas ao vivo, o que me deixou uma marca forte. No fundo, o meu trabalho resulta da minha vivência e da influência desses pintores. À pergunta se poderia indicar um pintor que consiga dar como favorito, não consigo responder… Considero sim, o conhecimento da História da Arte, fundamental na construção de uma linguagem própria e consistente de qualquer artista.

Nesta série de paisagens transversais tem preferência pelo azul, um tipo particular (ultramarino?), é da presença do mar?

De facto, houve uma fase, que penso que ainda não terá terminado, em que houve uma predominância do azul ultramarino. Não sei dizer exatamente, se será da presença do mar. Tenho alguma dificuldade em isolar assim os elementos falando do trabalho que faço, porque as coisas fluem. É uma coisa um pouco irracional, nesse sentido, mas penso que se poderá fazer uma ligação natural dessa forma. Quer queiramos, quer não, essa acaba por ser uma marca muito forte, uma força que imprime direção à nossa vivência, logo ao nosso trabalho, e penso que será legítimo interpretar dessa forma, ainda que, em muitos casos, poderá não ter uma ligação assim tão direta.

Fig. 4 - Paisagem Transversal VIII, 30x30 cm, acrílico e tinta-da-china sobre tela, 2016, Galeria ACERVO

…mas o horizonte está ausente. É, portanto, uma imersão na paisagem, esse aspeto também não é o tradicional na paisagem que pressupõe uma distância…

É uma boa observação. É uma abordagem da paisagem que, de facto, não é convencional e quando lhe dou esse título, também tem essa dimensão quase provocatória, uma vez que é uma evidência que em muitos quadros não há a linha do horizonte. Pode haver em algum caso, uma sugestão mas, muitas vezes vaga, que tende a entrar numa dimensão do que não se sabe e do que não se vê diretamente, sendo, contudo e como diz, um tanto ao quanto imersiva. Esse mundo interessa-me muito para lá do que é meramente percecionado visualmente. Essas paisagens são, na verdade, paisagens que eu não vejo do ponto de vista ótico. São paisagens que sinto. A questão da ausência da linha do horizonte está de certa forma ligada a essa ideia e não lhe dão a dimensão tradicional como se fossem paisagens de um ponto de vista romântico ou de um Turner que, mesmo não tendo uma linha do horizonte explícita, estão envolvidas numa neblina que sendo difusa, persiste em ser figurativa. E bem. No meu caso, não é assim, porque se tratam de paisagens imateriais.

O conceito de sublime pode ter algo a ver pois, como Kant o definiu, ele não existe fora de nós, é um sentimento de pequenez diante das forças da natureza. Diz-lhe algo o sublime ou é demasiado romântico?

É interessante a sua pergunta. A questão do sublime, apesar de ser um conceito particularmente romântico, está presente no meu trabalho, ainda que com a natural distância formal. A questão das “paisagens transversais”, de certa forma, trata de maneira particular esse conceito, que passa por essa consciência de dimensão própria relativamente a uma força descomunalmente maior.

Em Paisagens I e II de 2002, também utilizou a técnica fotográfica?

Esses trabalhos, como os outros que lhe seguem, têm partes fotográficas. Estão relacionados com o trabalho que realizei ainda na faculdade em que a questão da fotografia foi intercalada de uma forma experimental com a pintura. Foi uma junção de disciplinas. Era uma dimensão que queria experimentar e que foi parte de uma investigação sobre alguns materiais e processos de estampagem. Propus-me experimentar até que ponto o trabalho de pintura e o trabalho de fotografia podiam confluir no mesmo sentido. E, de facto, naqueles anos, tenho vários trabalhos que são feitos sobre papel com um processo de estampagem de imagens fotográficas e pintura.