"A arte como instrumento de inquietação": Conversa com René Tavares

ARTE

Nesta conversa, René Tavares partilha a sua experiência enquanto artista são-tomense com uma existência pendular entre Europa e África, refletindo sobre o papel do artista nas sociedades contemporâneas africanas emergentes, constituídas por povos diferentes e que, no entanto, partilham a mesma vivência diária. Como pode a arte dar visibilidade a estas formas de expressão sem as congelar através de um olhar que as petrifique em essências fixas? Como pode o artista contribuir para a consciencialização política e social local?

René Tavares é um artista são-tomense, formado na Escola de Belas Artes de Dakar, Senegal. Tem exposto em vários locais como São Tomé, Amsterdão, Luanda, entre outros, e participado em bienais como a Bienal de Dak’art ou a Bienal Internacional de Arte e Cultura de São Tomé e Príncipe. Desloca-se entre a Europa e África, oscilando entre Lisboa e São Tomé e Príncipe e cruza várias referências, desde a História de África e a História da Arte ocidental à sua própria experiência de trânsito entre fronteiras.

Esta conversa reflete sobre a diáspora africana e sobre as formas de miscigenação que desta decorreram, que também se reflete no processo criativo do artista a compasso com o ritmo de uma mestiçagem que sobrepõe tempos, lugares e suportes, diluindo as fronteiras estanques entre os domínios. Através desse questionamento das fronteiras, o artista expressa-se no sentido de despertar a consciência política e de empoderamento social, criando em modo de inquietação.

Os seus meios de expressão tanto podem ser a pintura, como o desenho, a fotografia, o vídeo, ou a performance, dependendo da ideia que pretende veicular. A sua prática artística pode ser considerada um “work on progress” que reflete sobre a sua própria experiência das passagens, dos espaços limiares entre as várias linguagens artísticas, entre a África e a Europa, entre o local e o global.

Quais são as tuas principais referências como pintor? Filias-te, ou não, em algum movimento na história da arte? Há na tua pintura um certo gesto que me lembra, a nível formal ou processual, o neo-expressionismo. Identificas-te em alguns aspetos com essa corrente?

No início da minha formação interessei-me por esses movimentos. Atualmente, acho que se transformaram numa linguagem muito académica e muito limitada, no sentido em que, hoje em dia, a própria arte se infiltrou noutros domínios, ultrapassando-se muitos limites.

Mas o gesto parece-me ser importante no teu processo artístico, o gesto dá a ver o processo da pintura que está lá, visível, acaba por tornar o próprio processo no tema da pintura….

A questão do gesto é difícil traduzir em palavras …pela forma como concebo a coisa, é como dançar, dança-se porque se sente a música. A pintura para mim é um verdadeiro desafio. Apesar de ser, aparentemente, uma atividade solitária, a parte solitária, esse aspeto da solidão, é anulado porque existe precisamente essa comunicação com o corpo, com a própria tela, com o tema. Isto tudo me desafia a ir mais longe.

Fig. 1 - René Tavares, Old colony people I, Dança na Sanzala com Sobas de Angola, 2012,

A forma como o processo da pintura fica visível faz-me lembrar um pouco Jackson Pollock …

Não tenho nenhuma influência de Pollock. Gosto do artista que ele foi, do fenómeno que foi na arte…

As tuas influências talvez vão beber a outras áreas, como, por exemplo, o tchiloli…

Eu estive numa escola muito senegalesa, as minhas referências estavam de costas viradas para tudo o que era  do ocidente, tínhamos história de arte mas tínhamos grandes referências de arte africana e muitos deles vivos e de fácil acesso. A arte vivia-se nas ruas. Aprendi muito com a arte da rua que se fazia naquela altura em África como forma de intervenção. Lembro-me que em França, me perguntaram quais eram as minhas referências e eu, propositadamente, dei todas as referências atuais africanas. Eles não conheciam de lado nenhum. O desenho é o fundamento de e o início de tudo. Aprecio artistas como, Phillip Guston, por exemplo, adoro-o pela forma como ele “desenhava a pintar ou pintava a desenhar”, ou Sigmar Polke, que admiro, assim como Jean Mitchell que só conheci quando estava em França e onde me disseram que tinha as suas referências – “já percebemos que gosta muito do Jean Mitchell”.Depois de o conhecer melhor impressionou-me bastante.

Como te sentes quando te colocam no estereótipo “arte africana”?

Essa “etiqueta” incomoda-me se a pessoa insistir muito e contrariar a ideia orientadora do meu trabalho. Eu nasci em São Tomé, o que faz parte de mim, reflete-se no meu trabalho. É mais do que um simples estereótipo.

A questão do resgate da história da arte e da cultura atravessa o teu trabalho, de certa forma, crias um outro agenciamento na História da Arte de São Tomé, fundas uma nova linha….

Perguntaste-me, há pouco, como é que eu sinto a cultura ou como eu sinto a questão da identidade. Uma pessoa é o que é, e aquilo com que mais comunica é com a sua cultura, a sua origem. Quem ignorasse esse aspeto teria dificuldades em comunicar com o mundo, pois é através do que nós somos, através das origens, que comunicamos com o mundo…

Tu tornas, portanto, esse processo de articulação do local com o global visível através das tuas pinturas?

Eu recorro a outras linguagens, de fontes diferentes com as quais existe uma reciprocidade de entendimento. Muitas vezes também sinto a necessidade de quebrar o entendimento, só assim consigo alguma reciprocidade. Faço isso muitas vezes a pintar e em toda a fase de construção da pintura.

Como qualquer outro artista, sou um agente cultural. A questão do património africano vem de uma história que ainda é muito recente e que está em constante movimento. No meu caso ainda vivo traços de uma existência colonial no seio do meu povo e no meu país. Não temos museu. A arte, os valores, andam connosco e fazem parte do quotidiano e transmitem-se até através das necessidades. Portanto eu penso que é normal haver uma arte contemporânea africana apesar de ser um continente antiquíssimo, a evolução da história tem sido constante, ela não está parada.

 No fundo, és uma mistura disso tudo, claro…

Eu não me fixo em estilos, técnicas. Estou sempre em processo, sempre, sempre, sempre. Cada trabalho é um documento, vamos imaginar assim, só que tem vários documentos (ri-se). É uma espécie de dossier em aberto.

E a investigação que, como relataste, por vezes fazes em Angola?

A investigação que faço com Angola anda muito à base da cultura africana e a sua dispersão. Ela está tão dispersa que estamos a fazer uma espécie de cartografia de todos os sítios onde estão os são-tomenses e os angolanos em comunidades. Estou a fazer isso junto da Fundação Sindika Dokolo. Eles fazem da parte angolana, eu estou a fazer da parte são-tomense, como é pequeno mais fácil pode ser; é um projeto com o apoio deles.

O trabalho que fizeste, Mionga House, 2014, por exemplo, faz parte desse projeto?

Olha que foi esse trabalho que motivou precisamente a Fundação …

É um trabalho que motivou imenso esta investigação. Os “angolares” –“povo angolar” – uma comunidade do sul de São Tomé oriundos de Angola, guardam traços, movimentos rítmicos e alugam expressões semelhantes aos da Ilha de Luanda. Durante a Trienal de Luanda, na qual tive uma participação como curador, juntamos os dois povos através da música. Os “Bulawe” de Angolares e os “Quituxe”, de Luanda, que têm muito a ver, são muito parecidos.

O Photo Passe Angolares, 2010, surge também desta preocupação. Estendi o Mionga Housepara fazer uma espécie de registo de identidade a que chamei Photo Passe. É uma serie de fotografia complementa-se com um vídeo. Foi feito exclusivamente para a Bienal de Veneza.

Fig. 2 - René Tavares, Making of video “Mionga House”, 2014, foto cortesia do artista

Essa investigação, posteriormente, também te inspira para o teu trabalho?

Vem do meu trabalho, vem muito do meu trabalho e vai servir. Não deixa de ser um trabalho artístico de recolha de material para projetos diferentes.

Entrevistas e tiras a fotografia depois?

Sim, é mais registo fotográfico. Vou buscar aos arquivos, peço a essas pessoas.

É um pouco a metodologia da antropologia?

É um pouco parecido, é divertido e interessante. É uma pesquisa sobre as origens e as suas ramificações.

Isso é interessante … E a tua componente de intervenção, patente, por exemplo, no trabalho República?

São pequenos trabalhos pontuais que eu acho que surgem dentro daquela da cidadania, ou de como uma pessoa se sente dentro do seu próprio território. Ou seja, são questões políticas e sociais que eu muitas vezes quero questionar através dessa intervenção. É um desafio pensar até que ponto é que eu consigo, enquanto artista, contribuir para a questão da cidadania, ou até que ponto é que consigo demonstrar a minha contribuição para a evolução da nação ou do povo, da mentalidade mesma. A Repúblicatrata-se de uma performance filmada e fotografada sobre o questionamento de qual a presença de cada um de nós dentro do nosso contexto político e a responsabilidade que temos.

Fig. 3 - René Tavares, República, 2013, foto cortesia do artista

Um artista de direita parece uma contradição em termos. O arrebatamento que o artista tem – se é mesmo um artista – é incompatível com a contenção de uma pessoa que quer seguir carreira….Essas duas coisas não se dão bem. Há, por vezes ainda, aquela ideia romântica do artista como um ser incompreendido…

Eu acho que é preciso que todos os artistas se revejam na sociedade como um profissional normal. Eu considero-me um profissional legítimo, normal, um funcionário público. Discordo da ideia que se criou: o artista é importante, é o que sabe mais que os outros. Atualmente, a arte já é valorizada como uma forma de conhecimento do mundo…

É uma forma de saber alternativa, mas acaba depois por ser objeto de estudo na ciência, não é? De ser ponto de partida para discursos.

Enquanto artista eu sinto-me no dever de contribuir para esta mudança de mentalidade, enquanto ela for necessária. Quando os problemas mais urgentes forem ultrapassados e houver uma distribuição do poder social mais equilibrada, aí talvez venha a sentir a necessidade de explorar a um nível mais interior.

Inseres-te um pouco naquela linha que veio com os futuristas, no sentido de fazer com que a arte não seja só no papel, entre os limites da folha, mas também uma forma de vida. Os futuristas acreditavam que iam criar uma sociedade nova

Hoje em dia isso é cada vez mais utópico…

Mas também acreditas, de certa maneira, que pode haver uma relação entre aquilo que tu fazes e o teu meio?

Dentro da realidade africana, é muito difícil separar a arte da política, pois a própria arte sempre acompanhou a política no sentido em que a nossa necessidade é precisamente a mudança de mentalidade dos nossos sítios…a política está sempre dentro da questão africana: ou como forma de reinventar uma realidade, ou como forma de apelar a realidades esquecidas.

Por outro lado, por vezes, a arte é instrumentalizada pelo poder. Durante as ditaduras a arte serviu para criar aquela imagem idealizada do ditador ou do Führer

De uma forma ou de outra, caímos sempre em questões políticas. Há muitos países africanos onde a democracia ainda é uma questão problemática. Portanto, há sempre muitas questões a serem focadas. Daí que considero que a questão da intervenção social faz parte da agenda e preocupação de muitos artistas, como faz parte da minha, é político. Daí temos duas opções: ou nós intervimos utilizando a arte como forma de inquietação ou optamos pelo romantismo dos séculos passados.

Somos confrontados com questões políticas na vida diária, como, por exemplo, a condição das mulheres e a sua presença/ausência no mundo da arte, a homossexualidade, etc. Em muitos países africanos, as questões religiosas, a questão da imigração, são muito problemáticas e são questões que se manifestam no dia-a-dia, por isso, não temos tempo para tomar atitudes românticas, temos que reivindicar as nossas causas ativamente.

Sim, pode considerar-se que é uma obrigação estarem abertos ao mundo que vos rodeia…

Aqui entre nós, a arte africana, porque é que passou a ser um tema super procurado por curadores? Para além da questão do poder económico, devido ao boom económico africano, foi sobretudo porque a arte africana ultrapassou todas as barreiras impostas e delineadas no mercado ocidental da arte contemporânea que vinha sendo feita no Ocidente. Agora oiço a surgir o conceito de lusofonia e arte lusófona…Acho piada.

O que achas desse conceito?

Eu ainda não me debrucei muito sobre esse assunto (ri-se).

Não achas que acaba por ser uma maneira de Portugal reivindicar ainda um certo poder sobre as colónias? É um pouco como estarmos a imitar os francófonos e o mundo britânico que inventaram esse conceito há mais tempo.

Este assunto da arte lusófona não começou em Portugal. Este assunto começou a ser debatido em Londres por um estudioso português com referências em colecções privadas de obras dos artistas dos países lusófonos…A Europa é muito teórica, tudo se transmite e perpetua através de documentos. Isto é grave!

A lusofonia, portanto, não é um problema vosso é um problema nosso…

Em São Tomé e em outros países de expressão portuguesa temos problemas mais urgentes, como levar a água para as comunidades, construção de casas sociais, desemprego juvenil, criação de centros culturais e escolas de arte, erradicação da pobreza e qualidade na educação. Não estamos nem podemos neste momento olhar para a questão da língua como um assunto importante, até porque as próprias nossas línguas maternas precisam de ser salvas diariamente. 

Achas que o crioulo pode vir a ser a língua oficial em São Tomé, como estão agora a tentar fazer em Cabo Verde?

Não, é possível que venha a ser mas vai ser difícil, muito difícil…Apesar de haver vários dialetos em São Tomé, não há esse interesse, até porque nas escolas a língua é o português e acho que faz todo o sentido. Em Cabo Verde já deve ser uma realidade, e também não acho mal.

No outro dia quando estivemos a conversar, falaste sobre o prazer que te dá a pintura. Tu, nesses momentos, esqueces-te de ti mesmo?

Esquecer-me de mim, não, pelo contrário, se calhar, entrego-me totalmente e não posso esquecer-me de mim…é um fascínio porque realmente acabo por me isolar de todo o outro universo que comunica comigo para comunicar só com o meu (ri-se). Sou eu mais do que tudo.

Tens que esvaziar a cabeça, tens que te transformar numa ilha…

É um bocado isso…Deixo fluir as coisas…É essa linguagem múltipla que uma pessoa ganha com a vivência que tem no dia-a-dia, é isso, e que depois canaliza através do isolamento de todas essas interferências.

Em relação, portanto, ao passado de São Tomé, acabas por te voltar mais para o futuro…Já tínhamos falado da última vez que nos encontramos, sobre o modo como a tua experiência como ilhéu se reflete no teu trabalho, através da constante deslocação que te faz valorizar

Por um lado levo São Tomé ao mundo e, por outro, trago o mundo para São Tomé. Pode ser uma vantagem na medida que a possibilidade de trazer as coisas que eu acho que são precisas, pode contribuir para melhorar, nem que seja simplesmente um “refresh”, aquilo que são os nosso valores adentro, como foi feito por mim noutro sítio onde estive ou passei.

Mas todas as nações são híbridas na origem, circunstância que cai no esquecimento, criando-se depois aquele discurso inventado…

Um mito…